sobre esta questão, a do poeta viver a verdade e tornar-se, em contrapartida, um mentiroso, ou seja, um fingidor, possuo este poema que trata exatamente desse assunto. ei-lo aqui:
“O poeta é um fingidor.” (Fernando Pessoa)
em todo o poema
o sempre mesmo esquema:
por mais que o poeta
fale o que o peito liberta
confesse o que — só — em verso
derrame o seu luto em vida imerso
ao escrever percebo plainar
um outro que paira que alço
pois que o poema
ao teimar andar
com o sapato que calço
o sempre mesmo esquema:
no fundo no fundo
qualquer poema que causo
— todo poema —
com o seu fundo falso
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ou seja: por mais que o poema insista em andar com o sapato que calço, por mais que queira falar sobre os meus passos, sobre o meu caminhar, há sempre, ali, nos versos, um fundo falso: pois que o poema não se trata de uma autobiografia; há questões, nele, que estão ligadas somente a ele, ligadas à sua composição, à sua estrutura poética, à resolução dos entraves causados pelo próprio fazer poético.
quando afirmo o fundo falso, é porque poesia não se trata APENAS, PURA OU SIMPLESMENTE, de linhas descritivas dos sentimentos ou das impressões que o poeta tenha. por mais que o poeta descreva sentimentos ou impressões, ao torná-los um poema, os sentimentos ou as impressões deixam de ser sentimentos e impressões para transformarem-se em outra coisa: em poesia.
na feitura de um poema, para que este esteja a contento, sacrifica-se, muitas vezes, a tão LITERAL descrição de sentimentos ou impressões do poeta, em prol de uma obra poética plena aos olhos de quem a criou. isso acontece; e muito. todavia, não significa dizer que, por conta do trabalho na confecção de uma poesia, o poeta seja falso “porque mente”, mas falso porque a realidade ali, na obra poética, é mesclada, misturada, à criatividade do bardo (desenvolvida por sua autoconsciência), quando este elabora as suas linhas.
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(texto de antonio cicero sobre a origem da idéia do poeta ser um “mentiroso” ao escrever)
Na tradição ocidental, isso começou com o poema “Teogonia”, de Hesíodo, onde as Musas dizem: “sabemos contar muitas mentiras parecidas com a verdade”. Depois, na “República”, Platão usou contra os poetas essa declaração das Musas. Para Montaigne, a grande poesia estava acima das regras e da razão. Teseu, no “Midsummer night’s dream”, de Shakespeare, afirmava que o poeta dava residência e nome a um nada feito de ar. Keats pensava que o poeta não tem caráter porque é um camaleão. O Zarathustra de Nietzsche – que no entanto se considerava poeta – dizia que os poetas mentem muito porque sabem pouco. Segundo Gombrowski, o mundo dos versos é fictício e falso. Rimbaud queria que o poeta se tornasse vidente. Ruy Belo descreveu a poesia como a emissão de palavras sem cobertura, isto é, sem fundos, do mesmo modo que se fala de “cheque sem cobertura” (ou de “cheque sem fundos”). Fernando Pessoa dizia que o poeta é um fingidor.
Mas observe que cada vez que um poeta diz a mesma coisa que outro, ele já está dizendo outra coisa. Não sabe ler poesia quem, sem perceber isso, supõe que os poetas estão apenas a se repetir. René Char, por exemplo, não está dizendo o mesmo que Fernando Pessoa, pois além de dizer que o poeta é mentiroso, ele diz que o poeta vive a verdade; e isso nos faz pensar na relação entre viver a verdade e dizer uma mentira; e no que é viver a verdade e no que é viver uma mentira. E quando penso nisso me ocorre que o importante no fundo é que o poema, e não o poeta, viva a verdade, quando mente, e que minta para viver a verdade; e que é para que o seu poema viva a verdade que o poeta a vive, quando mente para fazer o poema.
Todo poeta para escrever uma poesia vive na ilusão do viver….
É isso aí, Jane!
Beijo grande!