pessoas,
a motivação de mandar-lhes os textos que colho aqui e ali parte, sempre, primeiramente do coração.
seja prosa, seja poesia, tem que mexer, emocionar, tocar a sensibilidade primeira, que em mim é muito intuitiva, para, depois, o exercício mais cerebral, o de (tentar) compreender o objeto — o texto — de modo mais inteiro.
por isso, por trás das linhas que lhes chegam, há sempre algum motivo, alguma razão, deveras emocional, muito muito muito sentimental (rs).
lembro-me de que, numa conversa com o meu querido, amado e idolatrado (salve salve!) amigo thiago facina, vulgo “abel”, fotógrafo de olhos cheios (http://www.flickr.com/photos/tfacina/), ele me disse uma sentença que não mais esqueci: “muitas vezes estou ouvindo alguma música do arnaldo antunes e penso: ‘porra, como eu queria ter escrito isso!'” de pronto, respondi com um sorriso largo, de concordância, porque, como ele, eu também gostaria de ter escrito muitas e muitas e muitas e muitas de suas letras.
o arnaldo antunes, sinto-o ser da mesma escola e estirpe do gilberto gil, do vinicius de moraes, do chico buarque: é um poeta cujo discurso (o que é dito, a sua intenção com o que é dito), por conta do seu estilo ortográfico, é de fácil absorção — consegue-se entender de cara o que o poeta intenciona –, embora o trabalho de feitura, o de elaboração dos versos, seja pra poucos, porque complicadíssimo o encaixe de melodia e texto com tamanhas riquezas estilísticas e metafóricas (quando linhas para canções!, ressalva importante de ser feita). trocando em miúdos, arnaldo antunes pertence à escola que vinicius de moraes disse pertencer o chico buarque: fácil de entender, difícil de fazer. algumas das suas letras seguem aqui por essa genialidade, por essa capacidade tão cara (e incomum a muitos).
adorava quando estávamos na casa antiga, na casa onde morávamos, eu, no meu quarto, e o zé luiz brandão, uma espécie de anjo-irmão com quem moro, de repente, do seu quarto, largava o dedo no play do i-tunes e deixava fluir a voz gravíssima cantando “se tudo pode acontecer, se pode acontecer qualquer coisa…” ou qualquer outra coisa construída por arnaldo, verdadeiro arquiteto-titã das palavras. o sorriso largo brotava invariavelmente (rs). maravilha, zé (rs)!
por essas & por outras (sempre ótimas memórias), seguem os versos de um dos bambas na minha vida, para matar determinadas fomes e sedes.
aliás, nunca deixem de se perguntar durante a vida, em todos os momentos se possível: você tem fome de quê? você tem sede de quê? e mais que perguntar, procurem saciar fome & sede.
um beijo em todos vocês,
o preto,
paulinho.
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SAIBA
Saiba: todo mundo foi neném
Einstein, Freud e Platão também
Hitler, Bush e Sadam Hussein
Quem tem grana e quem não tem
Saiba: todo mundo teve infância
Maomé já foi criança
Arquimedes, Buda, Galileu
e também você e eu
Saiba: todo mundo teve medo
Mesmo que seja segredo
Nietzsche e Simone de Beauvoir
Fernandinho Beira-Mar
Saiba: todo mundo vai morrer
Presidente, general ou rei
Anglo-saxão ou muçulmano
Todo e qualquer ser humano
Saiba: todo mundo teve pai
Quem já foi e quem ainda vai
Lao Tsé Moisés Ramsés Pelé
Ghandi, Mike Tyson, Salomé
Saiba: todo mundo teve mãe
Índios, africanos e alemães
Nero, Che Guevara, Pinochet
e também eu e você
INCLASSIFICÁVEIS
que preto, que branco, que índio o quê?
que branco, que índio , que preto o quê?
que índio, que preto, que branco o quê?
que preto branco índio o quê?
branco índio preto o quê?
índio preto branco o quê?
aqui somos mestiços mulatos
cafuzos pardos mamelucos sararás
crilouros guaranisseis e judárabes
orientupis orientupis
ameriquítalos luso nipo caboclos
orientupis orientupis
iberibárbaros indo ciganagôs
somos o que somos
inclassificáveis
não tem um, tem dois,
não tem dois, tem três,
não tem lei, tem leis,
não tem vez, tem vezes,
não tem deus, tem deuses,
não há sol a sós
aqui somos mestiços mulatos
cafuzos pardos tapuias tupinamboclos
americarataís yorubárbaros.
somos o que somos
inclassificáveis
que preto, que branco, que índio o quê?
que branco, que índio , que preto o quê?
que índio, que preto, que branco o quê?
não tem um, tem dois,
não tem dois, tem três,
não tem lei, tem leis,
não tem vez, tem vezes,
não tem deus, tem deuses,
não tem cor, tem cores,
não há sol a sós
egipciganos tupinamboclos
yorubárbaros carataís
caribocarijós orientapuias
mamemulatos tropicaburés
chibarrosados mesticigenados
oxigenados debaixo do sol
PODER (em parceria com tadeu jungle)
pode ser loucura, pode ser razão
pode ser sim, pode ser não
pode ser maria, pode ser joão
pode ser carro, pode ser avião
pode ser saúde, pode ser educação
pode ser porta, pode ser portão
pode ser amor, pode ser prisão
pode ser drama, pode ser pastelão
pode ser laranja, pode ser limão
pode ser bíblia, pode ser alcorão
pode ser inverno, pode ser verão
pode ser pé, pode ser mão
pode ser nevoeiro, pode ser poluição
pode ser samba, pode ser baião
pode ser são jorge, pode ser dragão
pode ser circo, pode ser pão
só não sei porque
eu e você
não pode não
pode ser purê, pode ser pirão
pode ser rei, pode ser peão
pode ser chapeuzinho, pode ser lobão
pode ser raio, pode ser trovão
pode ser sujeira, pode ser sabão
pode ser seda, pode ser algodão
pode ser bermuda, pode ser calção
pode ser beijo, pode ser chupão
pode ser reforma, pode ser revolução
pode ser creme, pode ser loção
pode ser conselho, pode ser lição
pode ser gato, pode ser cão
pode ser eva, pode ser adão
pode ser fila, pode ser procissão
pode ser madeira, pode ser carvão
pode ser antes, pode ser então
só não sei porque
eu e você
não pode não
pode ser guitarra, pode ser violão
pode ser brocha, pode ser garanhão
pode ser trepada, pode ser masturbação
pode ser cama, pode ser chão
pode ser visita, pode ser invasão
pode ser regra, pode ser excessão
pode ser tristeza, pode ser preocupação
pode ser marte, pode ser plutão
pode ser xadrez, pode ser gamão
pode ser sério, pode ser gozação
pode ser solteiro, pode ser sultão
pode ser papo, pode ser discussão
pode ser progresso, pode ser recessão
pode ser bolsa, pode ser pregão
pode ser favela, pode ser mansão
pode ser fim, pode ser introdução
só não sei porque
eu e você
não pode não
pode ser cinema, pode ser televisão
pode ser cara, pode ser coração
pode ser mentira, pode ser plantão
pode ser hobby, pode ser profissão
pode ser país, pode ser nação
pode ser santos, pode ser cubatão
pode ser palpite, pode ser dedução
pode ser cópia, pode ser invenção
pode ser cagaço, pode ser precaução
pode ser frango, pode ser faisão
pode ser arroz, pode ser feijão
pode ser juros, pode ser inflação
pode ser incompetência, pode ser distração
pode ser águia, pode ser gavião
pode ser mocinho, pode ser vilão
pode ser um, pode ser milhão
só não sei porque
eu e você
não pode não
pode ser problema, pode ser solução
pode ser pobre, pode ser barão
pode ser biriba, pode ser balão
pode ser bela, pode ser canhão
pode ser anágua, pode ser combinação
pode ser bagre, pode ser salmão
pode ser geladeira, pode ser fogão
pode ser pai, pode ser patrão
pode ser acaso, pode ser intenção
pode ser pico, pode ser injeção
pode ser hotel, pode ser pensão
pode ser arte, pode ser borrão
pode ser doente, pode ser são
pode ser áries, pode ser escorpião
pode ser inteiro, pode ser fração
pode ser tudo, pode ser tão
só não sei porque
eu e você
não pode não
SE TUDO PODE ACONTECER (em parceria com alice ruiz, paulo tatit e joão bandeira)
se tudo pode acontecer
se pode acontecer
qualquer coisa
um deserto florescer
uma nuvem cheia não chover
pode alguém aparecer
e acontecer de ser você
um cometa vir ao chão
um relâmpago na escuridão
e a gente caminhando
de mão dada
de qualquer maneira
eu quero que esse momento
dure a vida inteira
e além da vida
ainda de manhã
no outro dia
se for eu e você
se assim acontecer
CABIMENTO (em parceria com paulo tatit)
como uma agulha cabe
numa caixa de fósforos
ou num caixão
num palheiro, num jardim,
no bolso de uma pessoa
na multidão
caminhão, montanha,
tudo cabe em seu tamanho
tudo no chão
hoje eu caibo nesse mesmo
corpo que já coube
na minha mãe
minha mãe, minha avó
e antes delas minha tataravó
e antes delas um milhão
de gerações distantes
dentro de mim
um lugar num porão
uma cama num colchão
como um átomo num grão
uma estrela na galáxia
como a bala de revolver
cabe no revólver
cabe também
numa caixa, num buraco
bem no centro do alvo
ou em alguém
onde cabem coração
cabeça tronco e membros
soltos no ar
como cada gesto cabe
no seu movimento
muscular
só nós dois, meu amor
não cabemos em mim
ou em você
como toda gente tem
que não ter cabimento
para crescer
DEBAIXO D’ÁGUA
Debaixo d’água tudo era
mais bonito
mais azul mais colorido
só faltava respirar
Mas tinha que respirar
Debaixo d’água
se formando
como um feto
sereno confortável
amado completo
sem chão sem teto
sem contato com o ar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
Debaixo d’água por encanto
sem sorriso e sem pranto
sem lamento e sem saber
o quanto esse momento
poderia durar
Mas tinha que respirar
Debaixo d’água ficaria
para sempre
ficaria contente
longe de toda gente
para sempre
no fundo do mar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
Debaixo d’água
protegido salvo
fora de perigo aliviado
sem perdão e sem pecado
sem fome sem frio
sem medo
sem vontade de voltar
Mas tinha que respirar
Debaixo d’água tudo era
mais bonito
mais azul mais colorido
só faltava respirar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
DO VENTO (em parceria com paulo tatit e sandra peres)
alimenta o fogo
atormenta o mar
arrepia o corpo
joga o ar no ar
leva o barco a vela
levanta lençóis
entra na janela
leva a minha voz
nuvens de areia
folhas no quintal
canto de sereia
roupas no varal
tudo vem do vem tudo vem
do vento vem tudo vento vem
do vento vem tudo
sacode a cortina
alça os urubus
sai pela narina
canta nos bambus
cabelo embaraça
bate no portão
espalha a fumaça
varre a plantação
lava o pensamento
deixa o som chegar
leva esse momento
traz outro lugar
tudo vem do vem tudo vem
do vento vem tudo vento vem
do vento vem tudo
COMIDA (em parceria com marcelo fromer e sérgio britto)
Bebida é água.
Comida é pasto.
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida,
A gente quer comida, diversão e arte.
A gente não quer só comida,
A gente quer saída para qualquer parte.
A gente não quer só comida,
A gente quer bebida, diversão, balé.
A gente não quer só comida,
A gente quer a vida como a vida quer.
Bebida é água.
Comida é pasto.
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comer,
A gente quer comer e quer fazer amor.
A gente não quer só comer,
A gente quer prazer pra aliviar a dor.
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer dinheiro e felicidade.
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer inteiro e não pela metade.
Querido Paulinho,
cheguei ao seu blog por meio do post de Cicero. Que beleza! Permita-me adicioná-lo nos meus favoritos – virei sempre aqui, tamanhas fome & sede de poesia.
Beijo grande.
arthur, lindo,
será um PRAZER vê-lo por aqui. sempre que quiser, por favor, me faça esta gentileza. 😉
beijo!
Manda brasa, Paulinho! Já estava demorando pintar esse blog!
Abração!
vamo que vamo, digue!
bom ter sua presença aqui, sempre!
beijo, meu lindão!
Paulinho,
Fico muito feliz por você ter criado esse blog, esse tesouro virtual e concreto. Fui o primeiro a comentar no blog do Cicero quando ele postou sobre o seu blog, mas para a minha surpresa o meu comentário não aparecia nunca. Então pensei que Cicero tivesse esquecido, pois você tinha agradecido ali a todos que postaram, exceto a mim. Quando hoje entrei no Acontecimentos vi que o meu comentário estava postado e era mesmo o primeiro.
Eu estava viajando e só hoje voltei, pois estava a trabalho em Foz do Iguaçu. Parabéns pelo blog e imediatamente o colocarei no meu circuito íntimo.
Abraço forte!
Adriano Nunes.
meu lindo, meu sempre benvindo adriano,
na verdade, quando agradeci, o seu comentário não constava… mesmo aparecendo como o primeiro da lista, e certamente o foi, o blog deve ter “atrasado” no repasse para a apreciação coletiva.
mas fica aqui, registrado, o meu agradecimento e a minha enorme satisfação de tê-lo comigo.
HONRA enorme!
beijo!
Adorei esse post! Vi coisas lindas do Paulo Tatit e fiquei lembrando do Grupo Rumo do qual ele fazia parte junto com o Luiz Tatit. Daí lembrei da proposta do Grupo que era trazer, e trouxeram, o canto falado, a palavra cantada – como depois se reconfigurou quando tornou-se infantil. Mas o Luiz Tatit, mesmo tendo percorrido uma carreira solo ao final do Grupo, tb produziu poesias/músicas com tonalidades infantis, com uma simplicidade que beira a inocência.
Coloco aqui a minha favorita dentre as tantas músicas do Luiz Tatit que tanto me encantam:
Felicidade
Luiz Tatit
Não sei porque eu tô tão feliz
Não há motivo algum pra ter tanta felicidade
Não sei o que que foi que eu fiz
Se eu fui perdendo o senso de realidade
Um sentimento indefinido
Foi me tomando ao cair da tarde
Infelizmente era felicidade
Claro que é muito gostoso
Claro que eu não acredito
Felicidade assim sem mais nem menos é muito esquisito
Não sei porque eu tô tão feliz
Preciso refletir um pouco e sair do barato
Não posso continuar assim feliz
Como se fosse um sentimento inato
Sem ter o menor motivo
Sem uma razão de fato
Ser feliz assim é meio chato
E as coisas nem vão muito bem
Perdi o dinheiro que eu tinha guardado
E pra completar depois disso
Eu fui despedido e estou desempregado
Amor que sempre foi meu forte
Não tenho tido muita sorte
Estou sozinho, sem saída, sem dinheiro e sem comida
E feliz da vida!!!
Não sei porque eu tô tão feliz
Vai ver que é pra esconder no fundo uma infelicidade
Pensei que fosse por aí, fiz todas terapias que tem na cidade
A conclusão veio depressa e sem nenhuma novidade
O meu problema era felicidade
Não fiquei desesperado, não, fui até bem razoável
Felicidade quando é no começo ainda é controlável
Não sei o que foi que eu fiz
Pra merecer estar radiante de felicidade
Mais fácil ver o que não fiz
Fiz muito pouca aqui pra minha idade
Não me dediquei a nada
Tudo eu fiz pela metade, porque então tanta felicidade
E dizem que eu só penso em mim, que sou muito centrado
Que eu sou egoísta
Tem gente que põe meus defeitos em ordem alfabética
E faz uma lista
Por isso não se justifica tanto privilégio de felicidade
Independente dos deslizes dentre todos os felizes
Sou o mais feliz
Não sei porque eu tô tão feliz
E já nem sei se é necessário ter um bom motivo
A busca de uma razão me deu dor de cabeça, acabou comigo
Enfim, eu já tentei de tudo, enfim eu quis ser conseqüente
Mas desisti, vou ser feliz pra sempre
Peço a todos com licença, vamos liberar o pedaço
Felicidade assim desse tamanho
Só com muito espaço!
tia,
que delícia de letra! adorei!
e, tanto quanto a letra, AMEI a sua presença aqui!
esta é mais uma casa nossa!
beijo, flor!
volte sempre, por favor!