MUNDO SUBLUNAR

pessoas, 

seguem, para devida apreciação, versos de um poeta que me interessou por conta do seu nome. eu ainda não o conhecia, nem ouvira falar nele: carlito azevedo. aquele nome, carlito, estampado na capa de um livro de poesias, me suscitou um interesse imediato. porque, na poesia — vista com certa dose de ‘pompas’ e ‘circunstâncias’ por muitos (principalmente por seus admiradores) -, ter um poeta com um nome que soe informal e que me remeta, sempre, ao belíssimo personagem imortalizado por charles chaplin, são maravilhas, surpresas, do acaso. o livro foi comprado por essas razões e eu já me simpatizara com o poeta. 

no entanto, ao iniciar a leitura, sabe-se lá por quê, as suas poesias não se revelaram para mim. deixei-o por um bom tempo na prateleira, abrindo-o vez por outra, tentando uma aproximação, uma maior intimidade, mas isso não acontecia. até que, num flerte despretensioso, me chegou o momento tão esperado: ao ler o primeiro poema, a ficha caiu; a poesia, finalmente, desnudou-se, e eu, estupefato, estonteado com a sua beleza… dali pra frente: efeito dominó; a cada poema lido, a sua nudez consentida, e meu espanto com as lindezas que iam se desenhando aos meus olhos. desde então, carlito azevedo é um (grande) acontecimento para mim. 

a matéria-prima da poesia de carlito azevedo é muito bem traduzida pela epígrafe do seu livro chamado ‘sublunar’, uma reunião de poemas publicados ao longo de 10 anos de ofício (1991-2001). ei-la, a epígrafe, abaixo: 

Falo de ovos estrelados, coisa caricata, suja,

sublunar, como as maminhas

e o cão animal que ladra.

                                      (Adília Lopes) 

suas linhas formulam tratados poéticos sobre a vida cotidiana, comum, diária, sobre esta existência nossa, sublunar, ou seja, esta existência por sob a lua, por sob este satélite que guarda tudo o que nos compreende aqui, neste chão de terra em que as nossas estórias são delineadas.    

não me admira, portanto, a afeição de carlito por um poeta que, pra mim, é um deus das palavras na poesia brasileira, um poeta que marca, com sua escrita áspera e certeira, cheia de imagens mirabolantes, quem quer que o leia: carlos drummond de andrade. como vocês poderão ler, carlito faz uma das mais belas homenagens ao mestre no poema ‘fractal’. 

pra vocês, um ramalhete de poemas vindos da floricultura do carlito. 

beijo bom em todos,

paulinho.

______________________________________________________

(todos os poemas extraídos do livro sublunar, de carlito azevedo, ed. 7 Letras 

VACA NEGRA SOBRE FUNDO ROSA

 Até os cinco anos de idade jamais havia visto um trem de carga;
e até os oito jamais um meteorologista.
                                     A garota com sombrinha chinesa
foi um dia a minha garota com sombrinha chinesa, e a este
que brinca na areia da praia chamamos nosso filho, pois
é o que é, como a bola azul em suas mãos é a bola azul
em suas mãos e o verão é outra bola azul em suas mãos.
As coisas são o que são e sei que antes de precisar
outra vez barbear-me já terão voltado para o frio
de seu novo país. E talvez em meus sonhos
voltem a fazer falta as três dimensões
desse mundo espesso, sublunar, como
uma vaca negra sobre fundo rosa.
 
 
VENTO
 
A manhã e alguns atletas desde cedo que estão dando voltas
                                                                 — à Lagoa.
Outros seguem para o Arpoador (onde o ar é de sal e insônia
e a beleza ri com uma flor de álcool entre os dentes).
O mar desdobra suas ondas sob o violeta dos
olhos da menina no alto da pedra.
Um falsete fica reverberando sem querer morrer.
Dos cabelos desgrenhados do meu filho
se desprega, ao vento, como um
sorriso, como um relâmpago,
um pensamento triste.
 
 
NOVA PASSANTE
 
1. sobre
esta pele branca
um calígrafo oriental
teria gravado sua escrita
luminosa
— sem esquecer entanto
a boca: um
ícone em rubro
tornando mais fogo
suor e susto
tornando mais ácida e
insana a sede
(sede de dilúvio)
 
2. talvez
um poeta afogado num
danúbio imaginário dissesse
que seus olhos são duas
machadinhas de jade escavando o
constelário noturno:
a partir do que comporia
duzentas odes cromáticas
— mas eu que venero (mais que o ouro verde
raríssimo) o marfim em
alta-alvura de teu andar em
desmesura sobre uma passarela de
relâmpagos súbitos, sei que
tua pele pálida de papel
pede palavras
de luz
 
3. algum
mozárabe ou andaluz
decerto
       te dedicaria
um concerto
            para guitarras mouriscas
e cimitarras suicidas
(mas eu te dedico quando passas
no istmo de mim a isto
este tiroteio de silêncios
esta salva de arrepios)
 
 
FRACTAL (para Lu Menezes)
 
No meio da faixa de terreno destinada a trânsito tinha um
                 [mineral da natureza das rochas duro e sólido
tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido no
                 [meio da faixa de terreno destinada a trânsito 
tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido
no meio da faixa de terreno destinada a trânsito tinha um
                 [mineral da natureza das rochas duro e sólido.
 
Nunca me esquecerei deste acontecimento
na vida das minhas membranas oculares internas em que
                 [estão as células nervosas que recebem
                 [estímulos luminosos e onde se projetam
                 [as imagens produzidas pelo sistema
                 [ótico ocular, tão fatigadas.
 
Nunca me esquecerei que no meio da faixa de terreno
                [destinada a trânsito
tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido
tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido
         [no meio da faixa de terreno destinada a trânsito
no meio da faixa de terreno destinada a trânsito tinha um
                 [mineral da natureza das rochas duro e sólido.
 
 
OURO PRETO
 
Anjo não, Anjo:
como se um sopro
lhe sobre as asas
batesse e quase
 
voasse e, caso
voasse, sendo
leveza menos
que exatidão.
 
Anjo de igreja
ao ar aberto
(a nave: a nuvem?)
sabeis a pedra-
sabão, melhor,
a bolha-de-.
 
 
3 VARIAÇÕES CABRALINAS
 
1ª Como uma leoa gira
presa à própria labareda
(que mais que as grades é grade
de sangue, suor e vértebras)
a noite por toda a noite
debateu-se contra a teia
de labaredas escuras
que às coisas, de noite, ateia.
 
2ª Teu corpo gira na ponta
de uma labareda negra
mais alta que o Pão de Açúcar
os pés fincados na areia
(teu corpo explode e faminta
segue a labareda negra
cuja língua noite adentro
lambe a própria labareda).
 
3ª A dança veloz da língua
de uma labareda negra
a lamber no quarto escuro
sua própria labareda
se bastava (avareza
incomum em labaredas)
com ficar ainda mais negra
com ficar mais linda ainda
 
 
PAISAGEM JAPONESA PARA AGUIRRE
 
Pensei nos ventos frios
que sopram
da Sibéria enrolando-se
em seu pescoço, na pesca do salmão e
na corrida da raposa fugindo de seu covil
rumo à plantação de batatas; mas
 
aqui,
neste quase morro da rua Lopes Quintas,
com pedregulhos ao fundo,
você pousa agora um jarro sobre a mesa
 
e é quase como se pousássemos também
nossas vidas sobre tudo isso
e sorríssemos;
                pode ser a coisa
mais simples, como
a taça de café que aquece agora
as palmas de nossas
 
mãos (“ó doce hebréia”) e cheira bem;
 
além, o jóquei iluminado, a lagoa
que nos veste como camisa ensopada;
olhamos a lua,
 
amamos o mar.
 
 
LAGOA
 
Tendo às costas
(como asas pensas que a tarde
abre e fecha) o dorso cobreado da
montanha e os reflexos de cobre da lagoa,
a menina com o gato traduz, à mais que perfeição,
os veios profundos, invisíveis e subterrâneos,
a nos unir a quem amamos, e quando ele lhe
estira sobre o colo as patas ponteadas,
ela, para não acordá-lo, até seu
olhar põe na ponta dos pés.
 
 
LIMIAR
 
Os pés premindo
a inexistente relva do asfalto
duro da rua sem vida a não ser a
que lhe dás quando subitamente cruzas
o espaço e somes num átimo deixando
entretanto no ar qualquer coisa de tão
botticelliano quanto num crepúsculo mediterrâneo
uma colhedora de mimosas a quem um
homenzinho cedesse a passagem
à espera (desesperada)
de um sorriso
 
 
HOMEM DENTRO DO PESADELO
 
Patas de lobo arranham
seu pescoço enquanto
intenta em vão
com socos e chutes amortecidos
pelo ar pesado
romper a membrana do sono
 
Vai rompê-la — de fora —
o dia
com suas patas de lobo
 
 
NA GÁVEA
 
Enquanto o vento
sopra contra a flor caduca
da pedra, um som mais belo que o som das
fontes nos seduz a invocar do cubo de treva
nosso de cada noite que nos dê — não outro dia,
chuva nos cabelos, lampejos do sublime entre pilotis
de azul e abril, mas apenas a vertigem do ato,
o vermelho do rapto, a chegada ao fundo
mais ardente, onde tornar a reunir
cada fragmento nosso, perdido,
de dor e de delicadeza.
 
 
EPÍLOGO
 
“De onde sai o que sei?”
perguntei à cabeça caída
“Daqui”
lábios sem rosto responderam
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Uma resposta

  1. Paulinho,

    É muito bom descobrir novos poetas! Valeu!

    Abração!
    Adriano Nunes.

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