UM INSTRUMENTO DO MEU PRAZER – WALY SALOMÃO 2

 queridos, 

a vida, de fato, é surpreendente.
 
o que me ocorreu é um exemplo mínimo, bobo, singelo, de como não temos, nem podemos ter, total controle sobre o que nos acontece.
 
há um tempo, exatamente na manhã do dia 18 de junho, caminhando para o trabalho, não pensava em poema algum. nada em mente. a noite passada fora maravilhosa, encantada, feliz, e isso era a única coisa que importava.
 
mas a vida… eis o “causo” (rs): fones nos ouvidos, celular ligado em uma estação de rádio fm. de repente, uma chamada. atendo. converso. desligo. volta a estação radiofônica. diz o locutor: “e agora, começamos o bloco com a abelha-rainha, que faz aniversário hoje, maria bethânia.” e me arromba os tímpanos a beleza daquela voz, daquele som emitido por esta espécie de águia nordestina, cantando “mel”, composição do seu mano caetano veloso e do poeta waly salomão, que delineou linhas lindíssimas, emblemáticas na carreira da intérprete. foi dessa canção, inclusive, que recaiu sobre bethânia a alcunha de “abelha-rainha”. abaixo, um trecho da letra:
 
Oh, abelha rainha
Faz de mim
Um instrumento de teu prazer
Sim, e de tua glória
Pois se é noite de completa escuridão
Provo do favo do teu mel
Cavo a direta claridade do céu
E abarco o sol com a mão 
 
durante a canção, emocionado, assaltou-me, sem mais nem menos, sem que eu tivesse algum tipo de controle sobre a situação, o poema que segue. versos encantados, que tratam do fato de reinventar-se, de reter-se no imponderável, de abrigar-se, sem abrigo, no contínuo movimento de mudar, natural à existência. um grito pela liberdade de seguir rumos, de partir, sem sombras ou vestígios. atracar no presente, remando contra a maré sempre que preciso for. nadar, nadar, nadar, mesmo que se morra na praia antes de alcançar o mar.
 
lembrem-se: criar é desacostumar-se do que se é, do que está, ou seja, é desaceitar o fado fixo, é romper com a mesmice, com a monotonia da vida, e ser arbitrário, isto é: o ser casual, o ser não sujeito a determinadas normatizações / regras / convenções.
 
sejamos sujeitos a esse tipo de trabalho. sejamos sujeitos autônomos.
 
o poema é uma homenagem do waly salomão a ela, à voz que me permeia intensamente, à artista que só contribuiu para o meu amadurecimento em diversos aspectos.
 
é, também, uma homenagem minha a vocês.
 
um beijo em todos,
o preto,
paulo sabino / paulinho.
___________________
 
SARGAÇOS
  
para Maria Bethânia
 
 
“Fatalismo significa dormir entre salteadores”
Jalâl al-Dîn- al- Rume, poeta sufi
 
 
Criar é não se adequar à vida como ela é,
Nem tampouco se grudar às lembranças pretéritas
Que não sobrenadam mais.
Nem ancorar à beira-cais estagnado,
Nem malhar a batida bigorna à beira-mágoa.
 
Nascer não é antes, não é ficar a ver navios,
Nascer é depois, é nadar após se afundar e se afogar.
Braçadas e mais braçadas até perder o fôlego
(Sargaços ofegam o peito opresso),
Bombear gás do tanque de reserva localizado em algum ponto
Do corpo
E não parar de nadar,
Nem que se morra na praia antes de alcançar o mar.
 
Plasmar
bancos de areias, recifes de corais, ilhas, arquipélagos, baías,
                                                              espumas e salistres,
                                                               ondas e maresias.
 
Mar de sargaços
 
Nadar, nadar, nadar e inventar a viagem, o mapa,
                                                   o astrolábio de sete faces,
O zumbido dos ventos em redemunho, o leme, as velas, as
                                                                           cordas,
Os ferros , o júbilo e o luto.
Encasquetar-se na captura da canção que inventa Orfeu
Ou daquela outra que conduz ao mar absoluto.
 
                                Só e outros poemas
                                                  Soledades
                                                           Solitude, récif, étoile.
 
Através dos anéis escancarados pelos velhos horizontes
Parir,
              desvelar,
                           desocultar novos horizontes.
Mamar o leite primevo, o colostro, da Via Láctea.
E, mormente,
                     remar contra a maré numa canoa furada
Somente
              para martelar um padrão estóico-tresloucado
De desaceitar o naufrágio.
Criar é se desacostumar do fado fixo
E ser arbitrário.
                                                 Sendo os remos imateriais
 
                                                 (Remos figurados no ar
                                                  pelos círculos das palavras.)
____________________________________________________
 
(autor: Waly Salomão. livro: Lábia. editora: Rocco)
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