GOSTO DO PESSOA NA PESSOA

Pessoas,
 
Os versos que seguem foram escritos pelo maior poeta da língua portuguesa.
 
Comecei a ler as suas linhas ainda garoto e, desde sempre, um golpe de susto me arrebata ao término de cada poema. Ainda que eu não os entendesse, os versos me excitavam, mostravam-me que, ali, havia algo de muito poderoso. Iniciei as minhas leituras com algumas coletâneas, depois passei para as obras completas dos seus heterônimos. Hoje, suponho que o único volume da sua obra que não li por inteiro chama-se O livro do desassossego.
 
A admiração chega a aterrorizar, a causar medo, tamanhas beleza, precisão e genialidade dos poemas. Tudo excede, extrapola, tudo é incomum, ímpar, não ordinário, único: Fernando Pessoa e suas personas, e seus heterônimos. Neste poeta reside a mágica porque ele conseguiu levar a cabo, de forma magistral, (e)levar à última potência, a grandiloqüência de todos os seus eus. Somos um e somos tantos…
 
Tantas as características, tantas as nuances, tantos os sentimentos paradoxais, contrários, divergentes, que abrigamos, que Pessoa, tão sagaz, tão formidável, não deixaria de ser complexo, difícil: a própria existência tem a sua dose, cavalar (rs), de complexidade, de dificuldade.
 
É preciso saber viver. Essa sentença é tão curiosa quanto o vate em questão: pois ela é tão paradoxal quanto ele: se, por um lado, ela, a frase, não diz absolutamente nada com o que diz, por outro, diz absolutamente tudo. Pra mim, Pessoa vive nessa interseção. Pessoas também (rs). 
 
O vate é um clássico, deve ser lido e relido, relido e re-relido, incansavelmente. Não só pelos temas tratados, mas pelo domínio de todas as técnicas de se fazer poesia.
 
Aqui, um apanhado do que se intitula “Poemas de Fernando Pessoa, ele mesmo” (rs).
 
Assustem-se com o gênio!
 
Beijo em vocês!
O preto,
Paulo Sabino / Paulinho.
____________________
 
(livro: Fernando Pessoa – Poemas. seleção e organização: Cleonice Berardinelli. editora: Nova Fronteira)
 
Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
 
Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.
 
Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
_____________________
 
Hoje que a tarde é calma e o céu tranqüilo,
E a noite chega sem que eu saiba bem,
Quero considerar-me e ver aquilo
Que sou, e o que sou o que é que tem.
 
Olho por todo o meu passado e vejo
Que fui quem foi aquilo em torno meu,
Salvo o que o vago e incógnito desejo
De ser eu mesmo de meu ser me deu.
 
Como a páginas já relidas, vergo
Minha atenção sobre quem fui de mim,
E nada de verdade em mim albergo
Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.
 
Como alguém distraído na viagem,
Segui por dois caminhos par a par.
Fui com o mundo, parte da paisagem;
Comigo fui, sem ver nem recordar.
 
Chegado aqui, onde hoje estou, conheço
Que sou diverso no que informe estou.
No meu próprio caminho me atravesso.
Não conheço quem fui no que hoje sou.
 
Serei eu, porque nada é impossível,
Vários trazidos de outros mundos, e
No mesmo ponto espacial sensível
Que sou eu, sendo eu por ‘star aqui?
 
Serei eu, porque todo o pensamento
Podendo conceber, bem pode ser,
Um dilatado e múrmuro momento,
De tempos-seres de quem sou o viver?
_____________________
 
O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão…
 
São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.
 
São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.
____________________
 
Entre o sono e o sonho
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho,
Corre um rio sem fim.
 
Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.
 
Cheguei onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.
 
E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.
_____________________
 
Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
 
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
 
Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
________________________
 
Neste mundo em que esquecemos
Somos sombras de quem somos,
E os gestos reais que temos
No outro em que, almas, vivemos,
São aqui esgares e assomos.
 
Tudo é noturno e confuso
No que entre nós aqui há.
Projeções, fumo difuso
Do lume que brilha ocluso
Ao olhar que a vida dá.
 
Mas um ou outro, um momento,
Olhando bem, pode ver
Na sombra e seu movimento
Qual no outro mundo é o intento
Do gesto que o faz viver.
 
E então encontra o sentido
Do que aqui está a esgarar,
E volve ao seu corpo ido,
Imaginado e entendido,
A intuição de um olhar.
 
Sombra do corpo saudosa,
Mentira que sente o laço
Que a liga à maravilhosa
Verdade que a lança, ansiosa,
No chão do tempo e de espaço.
_________________________
 
ABDICAÇÃO
 
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
                                Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
 
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.
 
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas, de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
 
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
_________________
 
AUTOPSICOGRAFIA
 
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
 
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
 
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
_________________________
 
ISTO
 
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
 
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
 
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Publicidade

2 Respostas

  1. Paulinho,

    Excelente! Salve Pessoa!

    Grande abraço,
    Adriano Nunes.

    • salve, pessoa, sempre!

      beijão, meu querido!

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

%d blogueiros gostam disto: