queridos,
olhando as prateleiras do quarto ainda meu na casa da minha linda e querida mamãe, passei o olho no livro de onde saíram os poemas que seguem.
o assunto é recorrente na vida de todos: o amor.
amar é um exercício. e dos mais belos. compreender as coisas através do olhar amoroso é um aprendizado. e não falo apenas do amor conjugado ao desejo sexual. não; falo de todas as formas existentes de amor: amor pelos amigos, pelos pais, pelo trabalho, pelos filhos, pelos bichos, pelos lugares, pela literatura, pelas artes em geral. percebo que a prática de amar me torna uma pessoa melhor, mais condescendente, mais transigente, transforma o meu olhar diante das coisas, limpa os preconceitos. vejo essa verdade em mim e na minha mãe, por exemplo, que, por me amar de maneira abissal, como um abismo sem fundos, entendeu de um jeito doce e delicado determinadas questões que me dizem respeito, antes de racionalizá-las. tudo tudo tudo por conta do amor que nos abarca, que nos alimenta. ontem, deixei, antes de dormir, como costumo fazer quando vou à sua casa para uma visita, um bilhetinho no qual escrevi que devo a ela tudo o que, em mim, deu certo, tudo o que é bacana em mim, tudo o que resultou na existência de um homem amoroso, desejoso de uma vida boa para todos. e é a mais pura verdade. sempre digo a ela, num tom de brincadeira séria, que, se toda humanidade tivesse oportunidade de conviver com ela, de conhecê-la, este planeta seria um local muito mais aprazível de se viver (rs).
como o amor é dos sentimentos o mais nobre, ao meu ver, seguem poemas de um poeta que não se bastou nobre como também nobel (de literatura, evidentemente). um poeta que é apaixonante e apaixonado em toda a sua obra, muito tenro, muito sensível, no modo de tratar tamanho sentimento nesta singela seleção de sonetos.
amem!, amem sem medidas. o amor pode ser um grande veneno antimonotomia, um soco na azia da alma, um pontapé nos horrores mundanos.
beijo grande em todos.
o preto.
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(todos os poemas extraídos do livro cem sonetos de amor, de pablo neruda, editora L&PM, tradução de carlos nejar)
II
Amor, quantos caminhos até chegar a um beijo,
que solidão errante até tua companhia!
Seguem os trens sozinhos rodando com a chuva.
Em Tatal não amanhece ainda a primavera.
Mas tu e eu, amor meu, estamos juntos,
juntos desde a roupa às raízes,
juntos de outono, de água, de quadris,
até ser só tu, só eu juntos.
Pensar que custou tantas pedras que leva o rio,
a desembocadura da água de Boroa,
pensar que separados por trens e nações
tu e eu tínhamos que simplesmente amar-nos,
com todos confundidos, com homens e mulheres,
com a terra que implanta e educa os cravos.
XIV
Me falta tempo para celebrar teus cabelos.
Um por um devo contá-los e louvá-los:
outros amantes querem viver com certos olhos,
eu só quero ser penteador de teus cabelos.
Na Itália te batizaram Medusa
pela encrespada e alta luz de tua cabeleira.
Eu te chamo brejeira minha e emaranhada:
meu coração conhece as portas de teu pêlo.
Quando tu te extraviares em teus próprios cabelos,
não me esqueças, lembra-te que te amo,
não me deixes perdido ir sem tua cabeleira
pelo mundo sombrio de todos os caminhos
que só tem sombra, transitórias dores,
até que o sol suba à torre de teu pêlo.
XVI
Amo o pedaço de terra que tu és,
porque das campinas planetárias
outra estrela não tenho. Tu repetes
a multiplicação do universo.
Teus amplos olhos são a luz que tenho
das constelações derrotadas,
tua pele palpita como os caminhos
que percorre na chuva o meteoro.
De tanta lua foram para mim teus quadris,
de todo o sol tua boca profunda e sua delícia,
de tanta luz ardente como mel na sombra
teu coração queimado por longos raios rubros,
e assim percorro o fogo de tua forma beijando-te,
pequena e planetária, pomba e geografia.
XVII
Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.
Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascendeu da terra.
Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,
senão assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.
XLVI
Das estrelas que admirei, molhadas
por rios e rocios diferentes,
eu não escolhi senão a que eu amava
e desde então durmo com a noite.
Da onda, uma onda e outra onda,
verde mar, verde frio, ramo verde,
eu não escolhi senão uma só onda:
a onda indivisível de teu corpo.
Todas as gotas, todas as raízes,
todos os fios da luz vieram,
vieram-me ver tarde ou cedo.
Eu quis para mim tua cabeleira.
E de todos os dons de minha pátria
só escolhi teu coração selvagem.
LII
Cantas e a sol e a céu com teu canto
tua voz debulha o cereal do dia,
falam os pinheiros com sua língua verde:
trinam todas as aves do inverno.
O mar enche seus porões de passos,
de sinos, cadeias e gemidos,
tilintam metais e utensílios,
chiam as rodas da caravana.
Mas só tua voz escuto e sobe
tua voz com vôo e precisão de flecha,
desce tua voz com gravidade de chuva,
tua voz esparge altíssimas espadas
volta tua voz pesada de violetas
e logo me acompanha pelo céu.
Te amo como se amam certas coisas obscuras, secretamente entre sombra e a alma, tentando sempre fazer as coisas certas e você me bagunçando…. amei o poema.