Pessoas bacanas,
Segue, para vocês, um presente que é “a” lição de poesia: linhas nascidas do poeta considerado o maior da literatura brasileira. Acredito não enviar muitos dos seus versos por um respeito e um cuidado e um medo que possuo, porque sabedoria demais, algumas vezes, me paralisa (rs).
O que me impressiona na sua obra é a arquitetura dos versos, a engenharia das suas construções: tijolos-palavras os mais inusitados, inopinados, delirantes, que edificam imagens justas, precisas, certeiras, matematicamente calculadas, imagens saídas de regiões onde tudo é surpresa. Prédios-poemas lindíssimos, arejados, com diversas entradas e saídas, com escadas para cimos, alçapões para o profundo, para o poço negro e obscuro onde pisam sapatos de borracha fabricados para o passeio por sob águas solares, cujas correntes apontam uma variedade infinita de caminhos líquidos.
Este poeta é abissal, é um colosso do verbo.
Aqui, um momento faustuoso, poemas vindos de um livro seu chamado “O Engenheiro”, lançado nos anos 40, e dedicado a um outro magnífico vate, que também ganha, além da dedicatória livresca, uma poesia em sua homenagem: o mestre Carlos Drummond de Andrade.
Um outro poema, endereçado ao garboso poeta Joaquim Cardozo, é, de fato, dos mais belos que conheço para cantar o bardo que se veste com as roupas marítimas, bardo de águas longas e lentas, líricas, feito o mar.
João Cabral de Melo Neto é o engenheiro do poema, a voz que fala, que grita, voz alta, cheia de ecos, de horizontes, voz de muito alarde, porém, de um alarde quase mudo, silencioso: a voz mineral, de pedra.
Sua poesia: qual medicina branca, amenizadora, aliviadora, terapêutica, curativa. Sua prosa: feita de gestos elásticos, sentidos que se esticam, que extrapolam, onde se consegue apreender a física dos sustos, tamanho encantamento que excede e nos sobra.
Calcem a imaginação e passeiem por estas belas edificações poéticas. Abram suas portas e janelas, entrem e saiam sem bater!
Beijo em todos!
O preto.
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(autor: João Cabral de Melo Neto. livro: Serial e antes. editora: Nova Fronteira)
AS NUVENS
As nuvens são cabelos
crescendo como rios;
são os gestos brancos
da cantora muda;
são estátuas em vôo
à beira de um mar;
a flora e a fauna leves
de países de vento;
são o olho pintado
escorrendo imóvel;
a mulher que se debruça
nas varandas do sono;
são a morte (a espera da)
atrás dos olhos fechados;
a medicina branca!
nossos dias brancos.
A VIAGEM
Quem é alguém que caminha
toda a manhã com tristeza
dentro de minhas roupas, perdido
além do sonho e da rua?
Das roupas que vão crescendo
como se levassem nos bolsos
doces geografias, pensamentos
de além do sonho e da rua?
Alguém a cada momento
vem morrer no longe horizonte
de meu quarto, onde esse alguém
é vento, barco, continente.
Alguém me diz toda a noite
coisas em voz que não ouço.
Falemos na viagem, eu lembro.
Alguém me fala na viagem.
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro.)
A água, o vento, a claridade
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.
AS ESTAÇÕES
Uma chuva fina
caiu na toalha;
molhou as roupas,
encheu os copos;
esfriou os corações
enlaçados nas árvores
(do frio que separa
como os nomes).
O mundo cheio de rios,
lagos, recolhimentos
para nosso uso.
***
Num céu profundo,
máquinas de nuvens,
elefantes de nuvens
passam cantando.
Sob as mãos inertes
os móveis suam.
O ambiente doméstico
quer abrir as janelas:
sobre folhas secas,
sobre sonhos, fantasmas
mortos de sede.
***
Os homens podem
sonhar seus jardins
de matéria fantasma.
A terra não sonha,
floresce: na matéria
doce ao corpo: flor,
sonho fora do sono
e fora da noite, como
os gestos em que floresces
também (teu riso irregular,
o sol na tua pele).
***
Na fruta sobre a mesa
procuro um verso
que revele o outono;
procuro o ar
da estação; imagino
um freixo; exercito
truques, palavras
(ante a fruta madura
na beira da morte,
imóvel no tempo
que ela sonha parar).
A MESA
O jornal dobrado
sobre a mesa simples;
a toalha limpa,
a louça branca
e fresca como o pão.
A laranja verde:
tua paisagem sempre,
teu ar livre, sol
de tuas praias; clara
e fresca como o pão.
A faca que aparou
teu lápis gasto;
teu primeiro livro
cuja capa é branca
e fresca como o pão.
E o verso nascido
de tua manhã viva,
de teu sonho extinto,
ainda leve, quente
e fresco como o pão.
O POEMA
A tinta e a lápis
escrevem-se todos
os versos do mundo.
Que monstros existem
nadando no poço
negro e fecundo?
Que outros deslizam
largando o carvão
de seus ossos?
Como o ser vivo,
que é um verso,
um organismo
com sangue e sopro,
pode brotar
de germes mortos?
***
O papel nem sempre
é branco como
a primeira manhã.
É muitas vezes
o pardo e pobre
papel de embrulho;
é de outras vezes
de carta aérea,
leve de nuvem.
Mas é no papel,
no branco asséptico,
que o verso rebenta.
Como um ser vivo
pode brotar
de um chão mineral?
A LIÇÃO DE POESIA
1
Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.
Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:
nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.
2
A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.
Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.
Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.
3
A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.
A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis — naturezas vivas.
E as vinte palavras recolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.
Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.
A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.
Não há guarda-chuva
contra o amor
que mastiga e cospe como qualquer boca,
que tritura como um desastre.
Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro paredes, das quatro
estações, dos quatro pontos cardeais.
Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devorado nos jornais
sob as espécies de papel e tinta.
Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos.
A JOAQUIM CARDOZO
Com teus sapatos de borracha
seguramente
é que os seres pisam
no fundo das águas.
Encontraste algum dia
sobre a terra
o fundo do mar,
o tempo marinho e calmo?
Tuas refeições de peixe;
teus nomes
femininos: Mariana; teu verso
medido pelas ondas;
a cidade que não consegues
esquecer
aflorada no mar: Recife,
arrecifes, marés, maresias;
e marinha ainda a arquitetura
que calculaste:
tantos sinais da marítima nostalgia
que te fez lento e longo.
A PAUL VALÉRY
É o diabo no corpo
ou o poema
que me leva a cuspir
sobre meu não higiênico?
Doce tranqüilidade
do não-fazer; paz,
equilíbrio perfeito
do apetite de menos.
Doce tranqüilidade
da estátua na praça
entre a carne dos homens
que cresce e cria.
Doce tranqüilidade
do pensamento da pedra,
sem fuga, evaporação,
febre, vertigem.
Doce tranqüilidade
do homem na praia:
o calor evapora,
a areia absorve,
as águas dissolvem
os líquidos da vida;
e o vento dispersa
os sonhos, e apaga
a inaudível palavra
futura, — apenas
saída da boca,
sorvida no silêncio.
PEQUENA ODE MINERAL
Desordem na alma
que se atropela
sob esta carne
que transparece.
Desordem na alma
que de ti foge,
vaga fumaça
que se dispersa,
informe nuvem
que de ti cresce
e cuja face
nem reconheces.
Tua alma foge
como cabelos,
unhas, humores,
palavras ditas
que não se sabe
onde se perdem
e impregnam a terra
com sua morte.
Tua alma escapa
como este corpo
solto no tempo
que nada impede.
Procura a ordem
que vês na pedra:
nada se gasta
mas permanece.
Essa presença
que reconheces
não se devora
tudo em que cresce.
Nem mesmo cresce
pois permanece
fora do tempo
que não a mede,
pesado sólido
que ao fluido vence,
que sempre ao fundo
das coisas desce.
Procura a ordem
desse silêncio
que imóvel fala:
silêncio puro.
de pura espécie,
voz de silêncio,
mais do que a ausência
que as vozes ferem.
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