moços e moças,
o guardador de águas oblíquas, de vozes ocultas, ensinador das linguagens das coisas, diz que o sentido normal das palavras não faz bem ao poema. pois que a poesia se dá, segundo bem escreveu o poeta eucanaã ferraz, através do deslocamento da linguagem. a linguagem em diferente estado, que não comunica exatamente uma coisa, alguma coisa, qualquer coisa.
poesia comunica coisas nenhumas a fim de dizer todas.
há que se dar um gosto incasto aos termos. pois que poesia brinca com os vareios, com as variedades, do dizer. a língua do poema deflora significâncias nas pedras-palavras. há um inauguramento de falas.
poesia é casada com as imagens formadas pelas palavras. porém, as imagens são, no fundo, palavras que nos faltaram. poesia: o vão que ocupa: poesia: ocupação da palavra pela imagem: ocupação da imagem pelo ser. no fundo, é a nós, leitores-seres, que alguma coisa é dita, retida, é guardada, calada.
este veio poético instala em suas águas-obra uma agramaticalidade (quase) insana, pois com a linguagem poética o que importa é a reinvenção, e, com esta, o escurecimento das relações entre os termos, entre as palavras — ao invés do clareamento. assim como quando anoitece para que se acendam os vagalumes. poesia: escurecer, tornar turvo, para alumiar, para resplandecer, para acender as palavras, os termos, através das reinvenções com a linguagem.
à poesia cabe: portas abertas, veios, ventos, vãos. à poesia cabe: parede. não a que oprime, a que proíbe, mas a parede de tijolo, a parede que abriga, que acolhe, que aconchega. nesta parede, ao poeta cabe a lascívia da hera, que se funde à amurada sempre que a roça & penetra & finca & firma.
ao poeta faz bem desexplicar.
(poetas e tontos se compõem com palavras.)
manoel de barros, poeta das imagens mirabolantes, das imagens com o pé na cabeça, o rei dos neologismos, para mim, é uma espécie de mistura — única, diferenciada — de graciliano ramos com joão cabral de melo neto. isto é: uma riqueza do brasil.
tonteiem-se um tanto no tonteio da poesia!
beijo em vocês.
o preto.
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(do livro: O guardador de águas. autor: Manoel de Barros. editora: Record.)
I
Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
— Imagens são palavras que nos faltaram.
— Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
— Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos,
retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.
II
Todos os caminhos — nenhum caminho
Muitos caminhos — nenhum caminho
Nenhum caminho — a maldição dos poetas.
V
Escrever nem uma coisa
Nem outra —
A fim de dizer todas —
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar —
Tanto quanto escurecer acende os vagalumes.
VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.
VI
No que o homem se torne coisal — corrompem-se nele
os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que
empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um
inauguramento de falas.
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.
VIII
Nas Metamorfoses, em duzentas e quarenta fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados em
pedras, vegetais, bichos, coisas.
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval, pedral etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica,
edênica, inaugural —
Que os poetas aprenderiam — desde que voltassem às
crianças que foram
Às rãs que foram
Às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de
reaprender a errar a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma
nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.
12.
Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdômen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas — com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.
Paulinho,
Desconhecia esse poema do Manoel de Barros. Que preciosidade! Obrigado por compartilhá-lo!
Grande abraço,
Adriano Nunes.
que bom, meu querido e sempre benvindo!
grande beijo!
queria saber a página do que citou de mManoel de Barro /o guardador de águas. Não acho…obrigada. Bell
Isabel querida,
O que você deseja citar é este trecho:
“poesia é casada com as imagens formadas pelas palavras. porém, as imagens são, no fundo, palavras que nos faltaram. poesia: o vão que ocupa: poesia: ocupação da palavra pela imagem: ocupação da imagem pelo ser. no fundo, é a nós, leitores-seres, que alguma coisa é dita, retida, é guardada, calada.”
A citação acima é parte do meu texto introdutório à seleção de poemas. Por isso você não a encontra – a citação acima – no livro do Manoel. Porque é parte do meu texto. É a interpretação que faço da minha seleção de poemas do Manoel.
Toda vez que apresento ao leitor uma seleção de poemas, escrevo um texto em que mesclo trechos dos poemas da seleção com a interpretação que faço dos poemas. Essa é a razão pro nome do meu site literário: “Prosa em poema”: é a prosa, a conversa, que eu travo com o poema apresentado. É a minha interpretação acerca do que leio. O que é do Manoel, eu demarco sempre:
(do livro: O guardador de águas. autor: Manoel de Barros. editora: Record.)
O que vem abaixo da demarcação acima é do Manoel; o resto, o que fica acima da demarcação, trata-se de um texto escrito por mim.
Espero ter esclarecido a questão. De qualquer forma, me honra e alegra que alguém quisesse citar um trecho do meu texto achando ser do Manoel de Barros. Ganhei o dia (risos). Grande abraço!
Olá. Obrigada pelo retorno. Não ficou claro, para quem não conhece o autor ou, para quem não lembra exatamente, (como eu rsrs), que o texto inicial não é todo de Manoel de Barros. Parece uma citação seguida de seu comentário no final. Lia algumas coisas de Manoel, mas há mais de 20 anos, não me lembrava exatamente… Livro meu só tenho “Livro sobre o nada”. Citei tua “Prosa” em 2015 em minha Dissertação de Mestrado da Unicamp: “A parte invisível do olhar- audiodescrição no cinema: a constituição das imagens por meio das palavras-uma possibilidade de educação visual para a pessoa com deficiência visual no cinema” (e agora percebi, que errado rsrs). Esta semana escrevi um artigo, e citei mas como exigia a página, busquei e não encontrava rsrs, só a sua referência. Sua junção, mais que poética, poderia ser a de Manoel,visto que tem ressonância com sua obra, estilo e lógica. Lá de cima acho que não se zangou não!. Mas agora já foi pra edição… Gostaria de ter citado você. Ainda vou ver… aqui não tem página, nem número de edição … De qualquer forma, muito bom conhecer este espaço. Parabéns. Abraços.
Eu também espero que o Manoel não se zangue (risos)! Brinco dizendo que ele é o meu avô poético (risos). Ele há de entender. Muito obrigado pelas palavras e pela citação que ficou para o Manoel. Uma honra. Grande abraço!