UMA DOENÇA HUMANA: RELÓGIOS DEMAIS

o tempo, de fato, é uma doença humana, é um deus irrevogavelmente doente.
 
nenhum outro animal, as plantas, os minerais, nada nem ninguém além do homem “entende” o tempo da maneira que o tempo é por nós compreendido.
 
os bichos, os vegetais, os pertencentes ao reino mineral, não se indagam, não se perguntam, não se questionam, sobre o tempo. simplesmente são. e ponto.
 
entender o tempo do modo que pensamos é uma doença, porém uma doença necessária, pois, diferentemente dos outros animais, somos seres imbuídos de razão crítica, não apenas de instintos, e necessitamos — por isso o tempo como doença necessária — dessa razão crítica para transcodificar o mundo, as coisas do mundo, para vivenciá-lo, para usufrui-lo, para pertencer a ele, para fazer parte.
 
tentar viver a vida sem o uso da razão significa a vivência de pleno & absoluto caos.
 
o que, no fundo, enxergo como a parte desnecessária de uma doença mais que necessária é o excesso de controle desse tempo que fundamos. o desnecessário, para mim, é o excesso de relógios. há controle demais, relógios demais, no mundo, dizendo a todo instante as obrigações & compromissos & encontros & reuniões & tarefas & afazeres. muitos relógios, relógios em demasia, ponteiros em todas as esquinas da existência.
 
é preciso um pouco mais de paciência.
 
é preciso um pouco mais de tempo ao tempo.
 
de que vale tanta pressa, tanto corre-corre, nesse tempo açodado, tempo diligente, se sempre chegamos tarde para salvar o outro da bala perdida, do vírus — que corre solto por aí! —, da fome de amor?   
 
atentem a essas questões, pessoas. não se deixem com, não se permitam o equivocado bilhete de vôo para a grande viagem que é: a vida!  
 
beijo em vocês,
o preto.
_________________________________________
 
(do livro: Vestígios. autor: Affonso Romano de Sant’Anna. editora: Rocco.)
 
 
ESTOU DIZENDO PARA ESTA LAGARTIXA
 
Estou dizendo para esta lagartixa
na parede do meu quarto
que o século vai acabar
mas ela não me olha
nem me entende.
 
Já tentei falar com a formiga
com a aranha
fui ao limoeiro da horta
e ninguém liga.
 
Olho os objetos da sala
minhas coisas no escritório (os óculos)
e no quarto (os sapatos).
 
Todos indiferentes.
 
Não estão em pânico
não devem nada
e não têm planos.
 
O tempo é mesmo
uma doença humana.
 
 
RELÓGIOS DEMAIS
 
Há relógios demais nas esquinas do mundo.
Também nas vitrinas
em todos os pulsos
em cada corpo
em cada cômodo da casa
nas repartições aeroportos e hospitais.
Alguns têm rubis
outros são de ouro e diamante
e há os que não obstante a ansiedade do instante
têm os horários vários
em todos os quadrantes.
 
Tantos relógios! 
como se não bastassem
a clepsidra em nossas veias
o relógio do Sol em nossas testas
e os carrilhões da consciência
lembrando que atrasados estamos
com o bilhete equivocado
no vôo
        para a inabarcábel eternidade.
 
Há relógios demais atando
o peito e o pulso
da angústia humana
ruas inteiras vitrinas ostensivas
na Quinta Avenida, Corrientes, na Gran Via de Madrid,
Regent Street em Londres
e nos boulevares de Paris
sem falar nos formidáveis shoppings
de Tóquio e de Pequim.
 
De que valem seus alarmes
e despertadores se
não mais despertamos se
não nos alarmamos
                                       com o horror
que neste instante explode
na dupla face do mundo
e chegaremos sempre tarde
para salvar o outro da bala
do vírus
              e da fome de amor?
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2 Respostas

  1. Olá!

    O livro “Que País é Este?”, de Affonso Romano de Sant’Anna vai ganhar uma nova edição em maio. A Editora Rocco e o Affonso Romano criaram um blog para fazer o aquecimento. Lá vamos publicar trechos dos poemas, críticas, um quase diário do Affonso além de fazer enquetes e concursos culturais em que o vencedor ganha a nova edição do livro autografada. O blog ainda está no começo, mas vai ser atualizado com frequência. Dê uma conferida!

    http://www.quepaiseesteolivro.wordpress.com

    • vou conferir o blog com o maior prazer!

      valeu a dica e muitíssimo obrigado pela visita!

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