AO AMOR, VIDA LONGA

bacanas,
 
a seleção de poesias foi pensada a partir de um tema: o amor.
 
sim sim, esse assunto tem se mostrado recorrente nos últimos textos aqui postados. de algum modo, é como uma catarse que venho realizando.
 
gosto muito, muitíssimo, do manejo que armando freitas filho possui para dispor palavras em versos.
 
estes escritos, extraídos de um livro seu lançado em 1982, “longa vida”, apontam para uma abordagem multifária do sentimento em questão. a começar pelo que abre o apanhado poético: um poema-pergunta sobre “amar”, que, no fundo, é a resposta apropriada ao enigma proposto pelas próprias linhas.
 
(amar: mergulhar de cabeça numa piscina do mais alto trampolim de mim sem sequer pensar se, lá embaixo, encontrarei água ou o ladrilho do vazio? amar: inventar mãos macias e cuidadosas que consigam reter a fuga do perfume do sonho de quem se ama solto na fronha?)
 
depois, segue falando:
 
da tristeza causada pelos cortes dos laços — dos nós que atam os amantes —, que a tesoura cega da vida pode causar;
 
da solidão vivida quando não se tem a quem amar (e a vida voa, embora imóvel, como uma nuvem no céu, e o domingo se desmancha sozinho em mim);
 
da grande viagem que é uma transa (quando muito bem realizada) e a perda de referências relativas ao tempo e ao espaço em tal viagem;
 
do absoluto azul sem susto de nuvem nenhuma para nublar o tempo do amor (quando este se dá de forma clara, límpida), amor que se faz & se refaz & se desfaz em ondas, feito o mar;
 
e das diversas formas de arrecadação do amor, as variadas maneiras de se pagar o amor que é recebido;      
 
as três últimas poesias não tratam exatamente desse assunto, e servem de epílogo à minha escolha.
 
confesso que a vontade era de publicar TODO o livro, pois sou APAIXONADO por ele. (há muitos outros poemas da minha preferência que ficaram de fora.) no entanto, o amor pedia-me destaque; resolvi não me furtar ao seu realçamento.
 
realçá-lo com as armas de armando, com as suas linhas de coloquialidades sofisticadas (suas construções frasais), que armam imagens espertas, bem inteligentes.
 
o título da obra de onde provêm os poemas, “longa vida”, refere-se à marca de um produto industrializado. o poeta, nesse livro, brinca com muitas outras referências como essa, mostrando-se um homem no/do seu tempo. é uma sacada, uma brincadeira, bastante astuciosa suscitada pelo bardo.
 
sorvam feito leite bom estes belos achados poéticos! (eles nutrem a alma.)
 
vivam as suas viagens, senhores, sabendo-as interiores, pois passam por sob seus pés pneumáticos, por sob o céu azul dos seus chapéus, ao mesmo tempo em que são anteriores, pois toda viagem avança e se alimenta de horizontes, de futuros — isto é, de infinitos vazios — e de nuvens.
 
beijo grande em todos,
o preto,
paulo sabino / paulinho.
________________________________________________________________________
 
(do livro: Máquina de escrever — Poesia reunida e revista. autor: Armando Freitas Filho. editora: Nova Fronteira.)
 
 
AMAR (para Cri)
 
Amar
é mergulhar de cabeça
sem saber nadar
sem saber de nada
ao seu encalço
numa piscina
como um camicase
pulando do último
do mais alto trampolim
de mim
                  sem asa-delta
salva-vidas, pára-quedas
sem perguntar
sem sequer pensar
se lá embaixo
vou encontrar água
ou o ladrilho do vazio?
 
Amar
é ter que inventar
mãos tão macias e cuidadosas
como nenhum Nívea
jamais ousou fazer
para melhor pegar
como quem pega, no céu
sem rasgar
                   o corpo de uma nuvem
seu vôo de papel de seda
                    em slow / snow motion
ou ainda alcançar
e reter
                  entre os dedos
a fuga do perfume
do seu sonho
solto em minha fronha?
 
 
SEJA DE SEDA
 
Seja de seda
           mas selvagem
corra
           e perca
por um triz, o fio
a linha
                  o ritmo
mas não esfrie
o brilho
                  nem apague
a luz da sua cor
que quer    
                  ser de fogo
arrepio e risco
não se afogue
em silêncio, em si
 
 
TREPAR COM VOCÊ
 
Trepar com você
é uma viagem:
noturno expresso
que entra por dentro
do tempo, do túnel
que não sei se parte
ou chega
se vai ou vem
se é ida ou volta
pela mesma linha
— como um raio —
sem contudo deixar
de curtir
de sentir cada segundo
cada estação do percurso.
 
 
ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE
 
Até que a morte nos separe
ou
a vida comece a cortar
com sua tesoura cega
nós, laços
o corpo-a-corpo do amor
e saia, SOS
pela escada de incêndio
deixando para trás
sempre na metade
                              tudo, tanto
a luz acesa na varanda
o relógio sem pulso
o pulo, o pique, o tique
do tempo, o minuto
miúdo, para sempre
                              esquecido
como o livro largado
no meio, que o vento
às cegas, da leitura
vira ao léu os olhos
as folhas 
                               vira a página
e a vida — dernier cri —
do alto da escada
um dó-de-peito, uma dor
subindo, tom por tom, em dégradé
na escala
                                dos degraus.
 
 
ABSOLUTO AZUL
 
Absoluto azul
                   sem susto algum
de nenhuma nuvem — nunca
nem por um instante
tão perto da paixão
e por isso, por você
eu vôo
                   voz e corpo
e atravesso a vida
o oceano
                   o mar aberto
com o amor chegando
sucessivo como as ondas:
parecendo sempre a mesma
mas
a que agora se suspende
corrige
o clamor do coração da cor
da outrora onda
anda e avança para ontem
e já esboça de cabeça
onde é apenas pensamento
antes de sumir
                     a outra de  amanhã
que ainda em sonho
elabora seu leão de água
sua leoa de espuma e coroa
                      e como o amor
se lança
sem esperar a ponte concluir
seus lances, cálculos
o alcance de sua segunda margem
                       mergulhando
pois eu sei
pois eu sou
esse incêndio aceso adiante
em seu louvor.
 
 
AMOR (para idem, ibidem)
 
Amor
                    a quem amar
se o telefone não toca  
e o domingo se desmancha
em mim
                     sozinho
na calçada
onde somente o vento
passa
                     no quintal
onde somente a torneira
chora
a mesma gota há milênios
                      e o jogo
acaba, com a tarde
sem gols
em todos os rádios
                      e a noite acende
a luz dos postes
um pouco antes do dia desistir
de se encostar, azul
em vão, na vidraça
e a vida voa
                       embora
imóvel
                       como uma nuvem
no céu
                       apenas pássaros?
 
 
AMOR COM AMOR SE PAGA
 
Amor com amor se paga
nas ruas, no Rio
de noite
                    e se encosta
nos muros, por debaixo
das marquises
                    das árvores
dos postes do Aterro
com seu luar pontual
em suspenso
                    como uma nave de jardim
e asfalto
pousando à beira-mar.
 
Amor com amor se pega
se enrosca
                    e cresce:
filodendros, trepadeiras
jibóias, abraços vegetais
e beijos
                    pelos bancos da paisagem
dos carros
na véspera do verão
o amor desata os cabelos
levanta as saias e dança
de patins e passa de bicicleta
sobre os bueiros da Força e Luz.
 
Amor com amor se pica
foge de casa
morre entre os morros e o mar
se mata
nas primeiras páginas
faz manchetes
— balas, sangue, punhalada
estricnina — e se incendeia
em camas transitórias
ateia o fogo da paixão às vestes
para melhor despir os nus
de todos nós.
 
 
SOU UM LIVRO ABERTO
 
Sou um livro aberto
mas o que eu digo
não se escreve
desculpe os erros
destas mal traçadas
mas é que escrevo certo
por linhas tortas
eu sou um livro
(ou um livre-pensador)
para ser devorado
num fim-de-semana.
 
 
TODA VIAGEM É INTERIOR
 
Toda viagem é interior
embora
                   por fora
se vista o carro ou o trem
e se aprenda a nadar
com o navio
                   e a voar
pelo ar, com as bombas
e os aviões.
                   Toda viagem
se faz por dentro
como as estações
se fabricam, invisíveis
a partir do vento
                   silenciosas
como quando um pensamento
muda de tempo e de passo
distraído de si, e entra
em outro clima
                   com a cabeça no ar:
psiu, míssil, além do som
e de qualquer mapa, previsão
ou guia que desenrolo
míope, sobre a estrada
que passa
sob meu pé pneumático
sob o célere céu azul
do meu chapéu.
                    Toda viagem
avança e se alimenta
apenas de horizontes
futuros infinitos vazios
e nuvens:
                    toda viagem é anterior.
 
 
MESMO QUE A VIDA DURE
 
Mesmo que a vida dure
apenas uma hora
                            eu como
um pedaço de Plus Vita.
Mesmo que dure
menos
                             eu bebo
meu copo de Longa Vida.
Mesmo que o coração
possa morrer
                             em 2000 — CCPL
(cuidado coração parando lentamente)
ou no próximo segundo
dentro do peito
                              longa
continua a ser — sempre —
a vida
                              sob telhados
e espaçonaves de Eternit.
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