EMBLEMAS

O poema ensina a estar de pé.
Fincado no chão, na rua, o verso
não voa, não paira, não levita.
 
Mão que escreve não sonha
(em verdade, mal pode dormir à luz
das coisas de que se ocupa).
 
(Eucanaã Ferraz – “Sumário”)
_________________________________
 
benvindos,
 
começo com uma confissão: impressiona-me o poder que o poeta carlito azevedo possui de me paralisar. inúmeras vezes, lendo um poema de sua autoria inédito aos meus olhos, após a leitura e o entendimento, sou obrigado a parar, a fechar a página, tamanho impacto causado (rs).
 
com o seu mais recente livro, “monodrama”, não seria diferente.
 
ao ler o primeiro poema, o que abre o livro, de cara, de frente: o espanto, o susto. fazendo as conexões que me foram possíveis de fazer, percebendo a plasticidade dos versos, o encadeamento da prosa poética, fiquei tão comovido, tão tocado, que estacionei e demorei um bom tempo até passar para o segundo poema (rs).
 
cada vez mais e mais carlito azevedo acentua, na minha singela opinião, uma característica bem sua, um emblema que se mostra como um belo cartão de visitas: o de paisagista (único, singular) dos versos.
 
a sua poesia é de uma plasticidade tamanha, que a minha impressão é de que estou, em verdade, na frente de grandes telas a óleo, de donairosos quadros pintados com suas tintas poéticas.
 
no texto selecionado, as estrofes (ou, se preferirem, os ‘poemas interdependentes’), a princípio, parecem desconexas, parecem que não se comunicam entre elas. mas só a princípio. aos poucos, as partes que integram todo o poema vão juntando-se, fundindo-se, formulando, dessa maneira, uma única trama, um único drama (dentro de todas as nuances que são desfraldadas), isto é, o monodrama.
 
percebam como o poeta vai unindo, cruzando, no drama desenhado:
 
a garota bonita, de fartos seios, estudante, com sua bolsa-sanduíche, que gosta de fotografar manifestações e que provoca a primeira ereção do dia no segurança de um banco, que a vê pelo monitor da sala de segurança (e que sonha em casar com tal garota de seios apóstolos & ter um bebê, sem livrá-la, eventualmente, de umas boas porradas), em manifestação em frente à instituição financeira;
 
o fotógrafo imigrante, que deseja uma foto da sua filha pequena com seu coelho de pelúcia cor de ferrugem;
 
o jovem lírico, leitor de (patrick) modiano, sempre com cigarros, flores e postais, e que, de pronto, se interessa pelo novo inquilino e seus olhos negros; 
 
o “narra-drama”, que se envolve com a garota bonita, de seios volumosos (e que, às vezes, me parece ser o inquilino do jovem lírico. isso não ficou muito claro para mim);
 
tudo isso (& muito mais) costurado por deslocamentos temporais que dão ao poema a direção (nítida) dos fatos delineados.
 
(percebe-se que ora o poema descreve uma paisagem situada ao sul da rússia, próxima às montanhas caucasianas. aliás, há muitas referências — emblemáticas — a esse país, atentem.) 
 
montar este “quebra-cabeça”, este monodrama — lírico, lindíssimo — pode levar um tempo, todavia, vale a tentativa.
 
ele está aqui, à apreciação de todos.
 
aproveitem o exercício poético!
 
beijo grande em todos!
 
(um especial em carlito, por este presente em versos.)
 
o preto,
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Monodrama. autor: Carlito Azevedo. editora: 7Letras.)
 
 
EMBLEMAS
 
 
Um imigrante
bate fotos trepado
no toldo de
um quiosque
a multidão grita
em frente ao Banco
aparece um malabar
aparece um pastor
imagens da pura
desconexão
aparecem as montanhas
lilases do Cáucaso
mas na foto buscada só
aparece a imagem
da menina
com seu coelho
de pelúcia
sua dobra
cor de ferrugem
contra a luminosidade
 
Os rostos 
se sucedem
nos monitores 
dentro da
sala de segurança
do Banco
como projeção
de slides
 
todos ali riem
quando veem
um falso
Vladimir Ilitch
bêbado
se engraçando
com a jovem
olhos de guepardo
leitora de Rilke
seios grandes
 
Entre tantos
manifestantes
é ela quem arranca
a primeira
ereção do dia
do segurança
de óculos espelhados:
 
uma pequena
vibração
em um dia cheio
de vibrações
 
Uns olhos negros
que vi na Turquia
reaparecem
no rosto
do novo inquilino
para água quente
basta girar este
disco de cores até
o rubro
o incandescente
 
Ela diz na carta:
não era russa era alemã
e não era cientologia
era tibetologia
mas foi sim do russo
que ela traduziu
a tabuleta em frente
ao prédio:
“Os preceitos de Lênin
são verdadeiros”
 
Agora o empresário
agora o demitido
agora
o secretário-geral
agora
o guarda-florestal
explicando
o cogumelo
vermelho com pintas brancas
a casa de J. M. Simmel
mas um dos monitores
transmite continuamente
a imagem parada
de um deserto
 
A economia já previa
o desabar da chuva
no interstício de algum
cálculo diferencial?
pensa o jovem lírico
em frente à janela 
 
Agora ele está lá
sentado sobre
a máquina de lavar
do subsolo
mastigando pasteizinhos
e lendo De Lillo,
digo, lendo Modiano
ele tem sempre
cigarros ou flores
e envia todo o tempo
cartões-postais
 
“gostei de imediato
do novo inquilino
do seu jeito de
segurar a caneta”
 
No saguão do banco
as paredes estão
cobertas de tapeçarias
representando
bardos célebres
da Ásia central
 
Suba na minha asa esquerda
e eu lhe mostrarei
(vamos voar!)
os mais ocultos recantos
dessa potência comercial
 
Ela tem um sanduíche
e uma bolsa-sanduíche
gosta de fotografar
as manifs
os meetings
me fala de uma
portuguesa
que conheceu
no 1º de maio
e que depois
se deitaram na grama
cheia de esquilos velozes
a vida também era só
velocidade e esquilos
sob os feixes luminosos
do 1º de maio
 
Uma descoberta sexual:
aqui ninguém trepa
depois das manifestações
 
A gente podia
conversar mais vezes
não amigos certamente
mas tampouco inimigos
adorei aquela tarde
no hotel do Cosme Velho
o ponto mágico
do morro na janela
 
“O lírio gravado no
ombro de Milady
permitiu a D’Artagnan
reconhecer nela
uma envenenadora
já punida no passado
pelos seus crimes”
 
Como a irmãzinha
caçula de um conto russo
você saltava da cama
com um cobertor
sobre os ombros
e rosnava imitando
um pinsher
para o ondular das cortinas
na penumbra fluo
do quarto de hotel:
 
Nitidez é um caso dessa luz
seu perigo e
seu desmoronar
 
Sem desgrudar os olhos
do monitor o segurança
pensa que aquela ali
bem merecia
umas porradas
o lírico pensa
é só amor querendo nascer
por vias tortas
se ela o visse
já sonharia com o bebê
que os dois empurrariam
num carrinho pela orla
se ele pudesse
imaginar
como seriam felizes
morando num
prédio de tijolinhos
 
O que não excluiria
as porradas
esporádicas
 
Mas agora quem
tirava fotos no quiosque
toma uma cerveja
no bar em frente
ao quiosque
a menina com o coelho
toma um achocolatado
pelo canudinho
e gira até ficar
completamente
enviesada
na cadeira para ver
a areia da praia
 
Uma menina imigrante
pondo os pés na areia
da praia pode
ser um grande passo
 
Um imigrante tomando
uma cerveja sentado
no meio-fio pode ser
um grande passo
 
Nós os vemos
(você segurando firme
em minha asa)
eles não nos veem
 
Adorei aquela tarde
no Hotel da Lapa
eu nunca imaginei
que você tivesse
seios tão apóstolos
seu coração está aí atrás?
 
Um falso ator
no quarto ao lado
decorava a peça russa
tentava dizer ao outro
com as pontas dos dedos
o que é a fidelidade
do homem que
ele ama
 
Ninguém se chama Soviete
— Alguém se chama Soviete
— Um soviete é um mamífero
— Todo soviete é mortal
 
Qual a palavra
que escrevemos
no vidro do Banco
com as pontas dos dedos
sobre a poeira branca
das bombas
e da espuma
no vidro do Banco?
 
Uma ordem macabra chega
pelos fones de ouvido
do segurança
o lírico pensa
o amor não pode morrer
o amor está seriamente
ameaçado
enquanto admira
uma admirável irrupção
de herpes no espelho
(admirável mundo novo)
ele imagina que alguém
precisa fazer alguma
coisa o amor está querendo
respirar dentro da câmara
de oxigênio do saguão
sem oxigênio algum
para respirar
o segurança chega
ao saguão
e vê agora
por trás
das portas de vidro
e à frente
das lentes espelhadas
um grupo de
manifestantes
 
As balas
são de borracha
o amor
está salvo
 
Nem portuguesas
amantes de esquilos
trepam
depois das manifs
e meetings
ele diz desolé
 
Subimos e subimos
e subimos
mas no alto da escadaria
não havia Templo do Sol
só um falso Cardenal
vendendo sortilégios,
digo, souvenirs
 
Então descemos
e descemos e descemos
paramos no quiosque
para uma Coca-cola
e perguntamos
ao imigrante
que batia fotos
qual o nome de sua filha
com o coelho
ferrugem-dobra
de pelúcia
Ela?
 
Ela se chama Soviete
 
Bônus track:
 
Sua pele 
no hotel do
Cosme Velho
olhada
até à
incandescência
 
(Seu coração está aí, atrás
dos ossos?)
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