tudo o que é vida
me incita
— à sua luz,
pele pupila papila narina,
tudo se potencializa —.
a verdade destituída
de verdade:
no fundo, puro embate.
por isso assento,
vivo o meu alento
enquanto há tempo:
pois que tudo passa,
e, passando, de nada
me amassa a desgraça.
(aí está da vida a graça:
as desditas
aprimoram-me
às conquistas.)
o que há para viver? turbilhão?
uma luz anêmica na escuridão?
a blusa com falta de botão?
mas a minha vida é isto!:
por maior, por mais robusto o quisto,
conduzo-me pelo que foi e é dito,
pondo mais peito no que me insisto.
sem mais história:
o lance é cravar a vitória
com ou sem gol.
assim eu vou.
(“Caminho”, Paulo Sabino)
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por maior, por mais robusto o quisto, ponho mais peito no que me insisto.
augusto de campos afirma, bonito, lúcido: perseguir implacavelmente a si próprio.
a bênção do poeta: por mais robusta, por mais bem nutrida, a incompreensão alheia — por maior que sejam o desgosto & a raiva da mãe, furiosa com o ofício do filho poeta & com as linhas desenhadas por ele, por maior o desprezo e a crueldade que lhe dispense a mulher, que lhe dispensem aqueles que o bardo deseja amar —, maior será, sempre: o brilho fulgurante de sua vidência, ofuscando o perfil das multidões furiosas.
pois o poeta sabe que a dor é nossa dádiva suprema. o poeta sabe que as penas se dão (irremediavelmente) através das vivências, das experiências, e que elas, as dores, arrancadas à matriz dos raios primitivos, nos acompanham desde tempos imemoriais, desde os primórdios dos tempos, e que hão de nos acompanhar mundo afora.
dores: dádivas supremas. como viver sem elas?
o lance: administrá-las sem aprofundá-las, sem vivenciá-las em vales profundos, em covas & depressões & fossas difíceis de serem deixadas (pela altura, pelo tamanho que o buraco possa ter).
perserguir-se implacavelmente.
(os desprazeres surgirão. mas que não sejam mais importantes que a luz da sua vidência, que a luz do que se deseja para si. nunca.)
(se grande o quisto, mais peito no que me insisto.)
fiquem com este poema que, para mim, é um dos mais belos do mundo.
beijo grande em vocês,
o preto,
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Poesia e Prosa – Volume único. autor: Charles Baudelaire. organização: Ivo Barroso. tradução: Ivan Junqueira. editora: Nova Aguilar.)
I
BÊNÇÃO
Quando, por uma lei das supremas potências,
O Poeta se apresenta à platéia entediada,
Sua mãe, estarrecida e prenhe de insolências,
Sua mãe, estarrecida e prenhe de insolências,
Pragueja contra Deus, que dela então se apiada:
“Ah! tivesse eu gerado um ninho de serpentes,
Em vez de amamentar esse aleijão sem graça!
Maldita a noite dos prazeres mais ardentes
Em que meu ventre concebeu minha desgraça!
Pois que entre todas neste mundo fui eleita
Para ser o desgosto de meu triste esposo,
E ao fogo arremessar não posso, qual se deita
Uma carta de amor, esse monstro asqueroso,
Eu farei recair teu ódio que me afronta
Sobre o instrumento vil de tuas maldições,
E este mau ramo hei de torcer de ponta a ponta,
Para que aí não vingue um só de seus botões!”
Ela rumina assim todo o ódio que a envenena,
E, por nada entender dos desígnios eternos,
Ela própria prepara ao fundo da Geena
A pira consagrada aos delitos maternos.
Sob a auréola, porém, de um anjo vigilante,
Inebria-se ao sol o infante deserdado,
E em tudo o que ele come ou bebe a cada instante
Há um gosto de ambrosia e néctar encarnado.
Às nuvens ele fala, aos ventos desafia
E a via-sacra entre canções percorre em festa;
O Espírito que o segue em sua romaria
Chora ao vê-lo feliz como ave de floresta.
Os que ele quer amar o observam com receio,
Ou então, por desprezo à sua estranha paz,
Buscam quem saiba acometê-lo em pleno seio,
E empenham-se em sangrar a fera que ele traz.
Ao pão e ao vinho que lhe servem de repasto
Eis que misturam cinza e pútridos bagaços;
Hipócritas, dizem-lhe o tato ser nefasto,
E se arrependem por lhe haver cruzado os passos.
Sua mulher nas praças perambula aos gritos:
“Pois se tão bela sou que ele deseja amar-me,
Farei tal qual os ídolos dos velhos ritos,
E assim, como eles, quero inteira redourar-me;
E aqui, de joelhos, me embebedarei de incenso,
De nardo e mirra, de iguarias e licores,
Para saber se desse amante tão intenso
Posso usurpar sorrindo os cândidos louvores.
E ao fatigar-me dessas ímpias fantasias,
Sobre ele pousarei a tíbia e férrea mão;
E minhas unhas, como as garras das Harpias,
Hão de abrir um caminho até seu coração.
Como ave tenra que estremece e que palpita,
Ao seio hei de arrancar-lhe o rubro coração,
E, dando rédea à minha besta favorita,
Por terra o deitarei sem dó nem compaixão!”
Ao Céu, de onde ele vê de um trono a incandescência,
O Poeta ergue sereno as suas mãos piedosas,
E o fulgurante brilho de sua vidência
Ofusca-lhe o perfil das multidões furiosas:
“Bendito vós, Senhor, que dais o sofrimento,
Esse óleo puro que nos purga as imundícias
Como o melhor, o mais divino sacramento
E que prepara os fortes às santas delícias!
Eu sei que reservais um lugar para o Poeta
Nas radiantes fileiras das santas Legiões,
E que o convidareis à comunhão secreta
Dos tronos, das Virtudes, das Dominações.
Bem sei que a dor é nossa dádiva suprema,
Aos pés da qual o inferno e a terra estão dispersos,
E que, para talhar-me um místico diadema,
Forçoso é lhes impor os tempos e universos.
Mas nem as jóias que em Palmira reluziam,
As pérolas do mar, o mais raro diamante,
Engastados por vós, ofuscar poderiam
Este belo diadema etéreo e cintilante;
Pois que ela apenas será feita de luz pura,
Arrancada à matriz dos raios primitivos,
De que os olhos mortais, radiantes de ventura,
Nada mais são que espelhos turvos e cativos!”
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