(do livro: Que País é Este?. autor: Affonso Romano de Sant’Anna. editora: Rocco.)
RAINER MARIA RILKE E EU
Rilke
quando queria fazer poemas
pedia emprestado um castelo
tomava da pena de prata ou de pavão,
chamava os anjos por perto,
dedilhava a solidão
como um delfim
conversando coisas que europeu conversa
entre esculpidos gamos e cisnes
— num geométrico jardim.
Eu
moderno poeta, e brasileiro
com a pena e pele ressequidas ao sol dos trópicos,
quando penso em escrever poemas
— aterram-me sempre os terreais problemas.
Bem que eu gostaria
de chamar a família e amigos e todo o povo enfim
e sair com um saltério bíblico
dançando na praça como um louco David.
Mas não posso,
pois quando compelido ao gesto do poema
eu vou é pegando qualquer caneta ou lápis e papel
[ desembrulhado
e escravo
escrevo entre britadeiras buzinas seqüestros salários coquetéis
[ televisão torturas e censuras
e os tiroteios
que cinco vezes ao dia
disparam na favela ao lado
metrificando assim meu verso marginal de perseguido
que vai cair balido num terreno abandonado.
CRÔNICA POLICIAL
1
§. Ontem três homens duros e armados
entraram na casa de um casal amigo
comeram, beberam, violentaram uma visita,
levaram dinheiro, objetos e saíram em zombaria
— num carro que largaram no subúrbio da Central.
§. Ontem a filha de um amigo esperava o ônibus,
chegou-lhe um mulato forte, que lhe deu um bote,
levou-lhe a bolsa e o corpo para o matagal
surrando-a com pedra e pau. E ela morria,
não conseguisse correr e se lançar na frente de um carro
que obrigado a parar levou-a ao hospital.
2
O casal da primeira estrofe e estupro
não foi ao jornal, mas hoje recebeu
outro casal
seviciado pelo mesmo grupo
que possuiu a mulher grávida
e seqüestrou a empregada como trunfo.
O pai da filha com o rosto destruído
ocultou a notícia com medo
da chantagem e da polícia.
3
Da minha varanda outrora eu via o mar e a ilha
antes de erguerem armadilhas e arranha-céus
em nossos bolsos e vistas. Crimes, antigamente,
não eram organizada guerrilha. Eram desastres aéreos
que não ocorriam com a gente.
Hoje sucedem-me na sala
— entre um programa e outro
no quarteirão
— entre um legume e outro.
Estou no Líbano, na Irlanda, Vietnã, Chicago e Stalingrado.
Há uma batalha em plena rua e o governo não sabe.
Inaugura estradas, deita fala, sem ver que as rodovias
estão cheias de eleitores mortos
— e seu discurso, crivado de balas.
4
Há dias,
minha filha vindo do colégio
deu o relógio
a um garoto uniformizado,
mas armado de pau e prego,
como a prima, que entregou o colar na esquina.
À filha menor ainda não assaltaram. Assaltaram-lhe
a primeira babá na praça. Assaltaram-lhe
a segunda babá na praia
entre ameaças
ao prevenir à turista
para manter sua bolsa à vista.
E da janela onde outrora eu via o mar e a ilha,
mal vejo o meu futuro e os banhistas. Vejo dois homens
correndo escuros da praça para boca da favela,
jogando para o ar uma bolsa amarela.
— É o quinto assalto hoje nessa esquina,
dizem no bar, enquanto entre o capacete e o cassetete
passam tranqüilos
os dois policiais peripatéticos do dia.
5
Minha porta já tem 100 trincos.
Depois de 6 revólveres, comprarei 5 bazucas,
8 granadas,
12 miras telescópicas,
embora nada me garanta que não me ponham a porta abaixo
com seus tanques.
Fora isto, não sei ainda o que fazer.
Mas não vou ficar aqui como um personagem de Hemingway,
que cansado de fugir
se deita velho como um cão
aguardando que me trucidem
a mim, minha família,
e mandem a foto autografada ao Presidente
como sinal da mais alta estima e elevada consideração.
COMO AMO MEU PAÍS
1
Com aquela melancolia que ao entardecer
em Teresina
eu olhava do outro lado do sujo rio
a vilazinha de Timon,
com a fúria da multidão endomingada martelando caranguejos
entre farofa e cerveja
numa praia em Aracaju,
com a penitência de quem amassa o barro
que depois vira anjo nas mãos de mulheres de Tracunhaém,
com a sordidez marinha do jangadeiro
em Cabedelo
empurrando a esperança mar adentro
e a repartir a espinha do dia morto sobre a areia,
com a cadência magoada do vaqueiro tangido nos seus cornos
a recolher o sal e a solidão
nos currais de Minas, em Curvelo,
assim
eu amo este país que me desama.
2
Deveria deixar de amá-lo como sub ser vivo
e amá-lo ostensivo
num tropel de bandeiras
num estádio de urros
e canções guerreiras?
Amo este país
como o hortelão cuida e corta
a praga de sua horta
e parte com seu cesto a bater de porta em porta,
com a resignação do operário
abraçado à neblina da marmita,
quando larga os panos e a mulher na madrugada
e sai do café quente de sua casa
e desce nos vagões de medo ao fundo da espúria mina.
3
Deve haver quem ame o seu país
como quem escarra em casa própria,
coça o saco na calçada,
arrota e palita os dentes,
entorna cachaça ao santo
suando a alma e o corpo
no ébrio espasmo do gol.
Uns amam seu país
como o mendigo o seu muro,
como o agiota o seu juro.
Outros
como o domador às suas feras:
— distância e precisão —
para evitar que o povo
— lhe arranque o poder da mão.
Outros amam seu país
como o carcereiro à prisão,
o lenhador a floresta
e o carvoeiro o carvão.
Há quem ame no palco e pista
sem máscaras, expondo as vísceras,
e há quem o ame sonolento
num camarote ou nas frisas
enquanto o cantor, o cavalo e o jogador
se atropelam numa ópera surrealista.
Há quem o ame com o cáustico e sádico amor
com que o gigolô deprava e surra a cansada mulher das madrugadas
ou quem o ame
como a própria mulher
furando seus cartões ao som do sexo
aviltado no metal da orquestra.
4
Eu, quando posso,
ponho minha alma num carro de bebê
e vou levá-la ao sol da praça. Praça
que ninguém mais conheceu
que Felipe dos Santos atado
à cauda do cavalo, cimentando o chão
com o repasto de seu sangue.
Fora isto
com a passividade estrangulada do índio
carregando as armas do invasor
tenho a ingenuidade e os desperdiçado amor
dos Kreen-Akarores em suas matas
quando viram os berloques e espelhos
trazidos
pelos irmãos Vilas-Boas
do outro lado do rio.
Desde então
eu amo este país
— como a prostituta ama a estrada.
ARTE-FINAL
Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.
O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.
Uma coisa é a letra,
e outra o ato,
— quem toma uma por outra
confunde e mente.
AS BELAS FERAS
Já me aconteceu mulheres lindas
desabarem inteiras em minha cama.
Aturdido, as recolhia com meu verde agrado,
gratificando em mim o carente adolescente,
recolhendo abraços de seus troncos, a solidão da boca
e o uso louco que faziam de meu corpo.
Já me aconteceu mulheres feias
— dessas que o homem tem e oculta sempre
desembestarem sôfregas em meus braços
como se fossem as mais belas feras:
se achegavam à minha cama como a anta
manca e arredia e, súbito, se alçavam numa esgalga potranca,
e a que era a gata parda desatava pulos de pantera,
e a que tinha tíbias finas de pernalta se convertia
na gazela tensa em gozo na mais alta penedia,
e a gorda ursa era uma lépida tigresa,
e a lerda dromedália a alegre zebra na savana.
Não posso me orgulhar. Não era eu que as transformava
num toque de Proteu moderno. Algo mais fundo
de si mesmas retiravam, como num conto
em que a bruxa explodisse os contornos de seu corpo
e em fada se encantasse.
O que havia de inseto nelas se entreabria
em patas e antenas, numa flor semimovente
e eu me punha a observá-las espantado
com as lentes de um zoólogo aturdido.
— Como pode uma toupeira
tecer a maciez do arminho?
— E a capivara ter a ligeireza da garça
e alçar-se em vôo sobre as dobras do meu linho?
— Como pode a esquiva foca
com o lerdo dorso e a boca imprópria
abocanhar com presa ágil
intenso gozo no meu corpo?
— Como pode uma baleia converter-se em bailarina
e enovelar-se inteira nos meus braços
com a transparência de uma água-viva
no envolvente aquário?
Muito me comovem essas feras, mais que as belas,
a mim que já fui feio, índio
residente na floresta disfarçado, envergonhado
ora da pata e do cabelo, ora do chifre e do nariz,
ora da pele e da invisível cicatriz sob o meu pêlo?
Me aconteceu mulheres lindas e mulheres feias
trocarem de atributos no meu leito. Já nem mais sei
dos meus prescritos preceitos ou se há conselhos a dar
quando se ama. Só sei que me esqueço de tudo
quando diante delas me desnudo
— no zoológico da cama.
OS POEMAS QUE NÃO TENHO ESCRITO
Os poemas que não tenho escrito
porque
trabalhando num banco me interrompiam a toda hora
ou tinha que ir à venda e à horta
— quando o poema batia à pota,
os poemas que não tenho escrito
por temer
descer mais fundo no escuro de minhas grotas
e preferir os jogos florais
de uma verdade que brota inócua,
os poemas que não tenho escrito
porque
meu dia está repleto de alô como vai volte sempre obrigado
e eu tenho que explicar na escola o verso alheio
quando era a mim próprio
que eu me devia explicado,
os poemas que não tenho escrito
porque gritam
ou cochicham ao meu lado
ligam máquinas tocam discos e ambulâncias
passam carros de bombeiro e aniversários de criança
e até mesmo a natureza solerte
se infiltra entre o papel e o lápis
inutilizando com sua presença viva
minha escrita natimorta,
os poemas que não tenho escrito
porque
na hora do sexo jogo tudo para o alto
e quando volto ao papel encontro telefonemas e prantos
a exigência de afetos, planos e reencontros
me deixando lasso o pênis e um remorso brando no lápis
esses poemas que não tenho escrito
como um ladrão escapando pelas frestas
ou covarde devorado por seus medos
e persas
esses poemas que não tenho escrito
esses poemas
estão lá dentro
me espreitando
alguns já ressecados
outros ressucitando
outros me acudindo
muitos me acenando
batendo à porta
— me arrombando
me invadindo a sala
com falas corretoras
enciclopédias e planos
esses poemas estão lá dentro
latentes
me apertando
atando
sufocando
e qualquer dia me encontrarão
roxo e acuado
senão boiando e afogado
— numa sangria de versos desatada.
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