queridos & benvindos & prezados,
quando pensei na publicação de um dos poemas que seguem, o outro veio, surgiu no encalço.
juntos, sinto que a beleza de um realça a beleza do outro, porque os sinto complementares — em certa medida.
dois poemas de dois poetas espetaculares, que merecem a junção aqui proposta.
os textos me fazem pensar muito no que me cerca.
senhores, nunca se esqueçam disto: o meu interior é uma atenção voltada para fora.
uma atenção voltada para fora.
amo a vida. sou um homem feliz. aposto na delicadeza para trilhar o caminho. sugiro, sempre, o sorriso e o bem-estar da alma.
só que a minha atenção, voltada para fora, me mostra que a trilha de muitos é feita de buracos & barreiras & pedras que deveriam inexistir.
buracos & barreiras & pedras de hoje, buracos & barreiras & pedras criados e recriados dentro deste modo de organização social, o de hoje, o de agora, o de já.
como louvar, com tantos vivas & salvas, um sistema que, apesar de me proporcionar todos os prazeres dos quais usufruo, de roldão, acarreta tanta dor & sofrimento para tantos outros?
se este modo de organização promovesse, DE FATO, EM LARGA ESCALA, a possibilidade dos prazeres dos quais usufruo, aí sim, todas as minhas salvas e todos os meus vivas.
portanto, uma organização social que, hoje, que, agora, que, já, que, neste instante, permite homens em lugares distantes, permite homens que não sabem ler e morrem de fome, homens de vida amarga e dura, que produzem o açúcar puro e branco que adoça o meu café nas manhãs de um apartamento da zona sul carioca, terá, apenas em parte, repito: APENAS EM PARTE, os meus vivas & salvas.
há quem propale que tal organização social é a “melhor” que já tivemos até hoje, porque garante o uso da razão crítica no seu mais alto grau, com a liberdade que lhe é necessária para que ela, a razão crítica, alcance a sua plenitude. e eu concordo com isso.
porém, aos meus olhos, nem sempre o “melhor” me é suficiente. eu não me contento com pouco. não sou homem para pouco. eu sempre quis muito. muito.
e, dentro desta organização vivenciada, que permite e cria e deseja homens-zumbis, verdadeiros vivos-mortos, o muito que temos hoje, agora, já, ainda é muito pouco.
(luxo para todos. TODOS.)
assim sendo, a questão, senhores, reside nisto aqui: se eu acho que vivemos, na história das sociedades humanas, o melhor de todos os tempos até aqui vividos? sim, eu, de fato, acho que vivemos o melhor de todos os tempos.
se, porque vivemos o melhor de todos os tempos vividos (até aqui) na história das sociedades humanas, me sinto satisfeito? não, de fato, não me sinto satisfeito com esse melhor.
este o “x” da minha questão, senhores.
como resolver a equação? que solução para esse problema? (in)felizmente não a tenho.
sugiro construirmos juntos uma solução, através de muitas conversas & debates & esclarecimentos.
este “melhor”, mesmo sendo o “melhor”, e eu o reconheço por conta de todos os prazeres dos quais desfruto, ainda não satisfaz.
no hoje, no agora, no já, no neste instante: muito é muito pouco.
lembremos dos abutres. lembremos dos urubus.
lembremos das vidas secas.
luxo para todos! TODOS!
um beijo em vocês,
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Toda Poesia. autor: Ferreira Gullar. editora: José Olympio.)
O AÇÚCAR
O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.
Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.
Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos vinte e sete anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.
Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.
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(do livro: Parte Alguma. autor: Nelson Ascher. editora: Companhia das Letras.)
OS DOIS URUBUS
Um urubu que, jururu,
avoa com outro urubu
diz-lhe: “Compadre, quede um rango
mais suculento que calango?”.
O outro urubu diz ao primeiro:
“Há poucas horas, companheiro,
eu vi um pessoal que, na caatinga
perto daqui, morreu à míngua
após comer tudo o que segue:
uma asa branca e o próprio jegue
além de um cadela feia
que eles chamavam de Baleia.
Do que terão morrido (como
diria em seu famoso tomo
que também trata de uns sem-teto
o João Cabral de Melo Neto),
quer de emboscada, fome, doença,
não faço idéia, não — paciência!
O charque ali será polpudo
se os vermes já não roeram tudo”.
Mas, por incrível que pareça,
se os urubus chegam depressa,
vivos que estão, os retirantes
comem os dois urubus antes.
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