queridões & queridonas,
há bastante tempo penso em publicar este poema. quando terminei a primeira leitura que fiz, chorava sem conseguir conter as lágrimas (rs). fiquei tão emocionado que, à primeira oportunidade, li-o para minha mãe, a cabocla jurema armond, e ela também se emocionou muito.
na verdade, o que desejo é fazer uma espécie de filme com estas linhas. elas são cinematográficas; tenho tudo na cabeça: planos, contraplanos, cortes, ângulos, fotografia, tudo para a realização da película. pela ambição deste que vos escreve, a produção não sairia nada barata (rs), mas o vídeo ficaria lindíssimo (rs).
e já que ontem, 13 de maio, foi o dia em que se decretou oficialmente o fim da escravidão, a razão de publicar os versos a seguir surgiu (e caiu) como uma luva.
o poema trata da chegada, numa manhã, de uma mancha negra que toma, por completo, tudo o que encontra pela frente. há, na vida de quem vive tal experiência, um grande desconcerto pelo acontecimento. a flor-manhã, que nos chega sempre clara, desabrochou em naco de carvão. cidades inteiras encobertas por essa “estranha” mácula negra que aterrisou por sobre tudo & todos.
junto com a mancha escura, podia-se ouvir, e até mesmo ver, certa música a crescer como o raio daquela nódoa que atingia o centro das coisas, o coração do mundo.
de maneira poética (e lindíssima), o poema anuncia a chegada da mancha escura, isto é, anuncia a chegada da marca negra, (im)posta, pela força da cultura africana, no dia-a-dia nosso. no fundo, o poema, liricamente, aponta para a chegada dos traços de uma cultura que se fincou e deu raízes, mesmo contra a vontade de muitos. a introdução, com a chegada forçosa dos negros, da nódoa que esses negros traziam consigo, a nódoa das palavras, a nódoa das religiões, a nódoa dos ritmos musicais, a nódoa da sua existência.
hoje, queiram ou não, a cultura brasileira é tomada por signos que se desdobraram do que trouxeram os africanos. no cancioneiro popular, se pensarmos nos ritmos aqui criados, tal influência é notória. por isso o título da poesia funciona muitíssimo bem: o tambor, instrumento africano percussivo de vários tamanhos e formas, amplamente utilizado na nossa música.
muita luta, muito suor, muito sangue derramado, muitas lágrimas & pesares, para que eu, paulo sabino, um preto (com todas as letras – rs), chegasse até aqui.
portanto, o meu respeito & a minha reverência a todos os homens & mulheres que dedicaram as suas vidas à causa da liberdade.
somos, ainda, um país racista, bem preconceituoso. como preto, sinto isso “na pele”. porém, como sou abusado & atrevido e não suporto gente burra (rs), ao meu modo faço com que a mancha escura continue a penetrar o coração do brasil.
ao toque do tambor, saúdo tal mancha: saravá, negrada!
beijo bom & carinhoso em TODOS,
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Cinemateca. autor: Eucanaã Ferraz. editora: Companhia das Letras.)
TAMBOR
Entrada a manhã, açafatas
qual baratas tontas para todos
os lados dobram no cesto negro
de vime negros lenços
e toucados. Horas em ponto
em todas as cidades, negro
um ponto surge por sobre todas,
como nas frutas o sinal maduro
faz anúncio de que algo ali
se abrevia: negro Coqueiral, negro
Aracaju, negra Laranjeiras, negra
Bocaiúva, negra Buriti dos Lopes,
negra Araçatuba. As palmeiras
reais (levam às casas do barão,
do desembargador, do capitão,
do visconde & cia.), rainhas
sobre o vasto cafezal, fincadas
ali tais e quais pés de mil-réis,
já não se parecem, para o espanto
de quem por elas passe, colunas
gregas, assim, negras. Do paço
a camareira-mor assombra-se
ao ver o luto das roupas de cama,
antes alvas como hóstias;
Dignitários da Ordem da Rosa
bravejam indignados com a flor-manhã
que desabrochou em naco de carvão;
os cônegos da Capela Imperial
não esperavam por isso, tampouco
os gentis-homens da Câmara, os lentes,
os lírios; a aia depara apavorada
com a água na taça: negra.
E pode-se ouvir, pode-se mesmo ver,
certa música a crescer como o raio
daquela mancha escura no centro
de tudo, no coração do mundo.
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