senhores,
eis, aqui, parte de um tratado geral das grandezas do ínfimo (do desimportante, do quase nada), formulado por um poeta.
diz-se que há, na cabeça dos poetas, um parafuso a menos.
o mais justo, no entanto, seria dizer que o poeta tem um parafuso trocado ao invés de um a menos.
a troca de parafusos provoca nos poetas uma certa “disfunção lírica”.
“disfunção lírica”: mais do que o mau funcionamento, mais do que o distúrbio, a disfunção é a função desobrigada de função. é a função inútil, que serve para: nada.
a partir da “disfunção lírica” o poeta elege as suas importâncias (alguém saberia medir a importância das coisas?): as importâncias do manoel: o que está nos chãos, nas frestas, nos musgos, nos barros: as grandezas do ínfimo.
entre elas:
o cisco, que, segundo o dicionário houaiss, pode significar: 1) pó ou miudezas do carvão. 2) lixo. 3) material sólido e heterogêneo (gravetos, ramos, algas etc.) trazido pelas enxurradas. 4) designação comum às aparas miúdas (…).
os passarinhos e tudo o que é necessário para compor um tratado sobre eles.
(essas disfunções líricas acabam por dar mais importância aos passarinhos do que aos senadores.)
a poesia, guardada nas palavras (é tudo o que sabe o poeta).
(poesia é uma graça verbal.)
o retorno à infância, que traz ao ser a sua ascensão. (é quando se vê como o adulto é sensato!)
as coisas inúteis (que garantem a soberania do Ser).
dedico este apanhado poético a dois irmãos, dois anjos, amigos a quem recorro, com quem choro, e que admiro: césar guerra chevrand & flávio chedid.
na noite da quarta-feira passada (19/05), reunimo-nos os três na casa do flavinho (onde derrubamos uma garrafa de jack daniel’s – rs) para um dos tantos encontros já ocorridos, encontros para colocarmos os nossos assuntos & interesses em dia.
e, como sempre, foi MARAVILHOSO.
flavinho, como eu, possui o livro de onde saltaram os poemas. li, durante o encontro, boa parte dos textos que seguem.
meninos (flavinho & césar): obrigadíssimo. por tudo. como lhes disse na quarta, e que fique registrado: vocês são peças-chaves, fundamentais na minha existência.
(que bom!)
beijo nos dois!
o preto de vocês.
outro nos senhores!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Poesia Completa. autor: Manoel de Barros. editora: Leya / Texto Editores.)
A DISFUNÇÃO
Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de
a menos
Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso
trocado do que a menos.
A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa
disfunção lírica.
Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica.
1– Aceitação da inércia para dar movimento às
palavras.
2 — Vocação para explorar os mistérios irracionais.
3 — Percepção de contiguidades anômalas entre
verbos e substantivos.
4 — Gostar de fazer casamentos incestuosos entre
palavras.
5 — Amor por seres desimportantes tanto como pelas
coisas desimportantes.
6 — Mania de dar formato de canto às asperezas de
uma pedra.
7 — Mania de comparecer aos próprios desencontros.
Essas disfunções líricas acabam por dar mais
importância aos passarinhos do que aos senadores.
DE PASSARINHOS
Para compor um tratado sobre passarinhos
É preciso por primeiro que haja um rio com árvores
e palmeiras nas margens.
E dentro dos quintais das casas que haja pelo menos
goiabeiras.
E que haja por perto brejos e iguarias de brejos.
É preciso que haja insetos para os passarinhos.
Insetos de pau sobretudo que são os mais palatáveis.
A presença de libélulas seria uma boa.
O azul é muito importante na vida dos passarinhos
Porque os passarinhos precisam antes de belos ser
eternos.
Eternos que nem uma fuga de Bach.
TRIBUTO A J. G. ROSA
Passarinho parou de cantar.
Essa é apenas uma informação.
Passarinho desapareceu de cantar.
Esse é um verso de J. G. Rosa.
Desapareceu de cantar é uma graça verbal.
Poesia é uma graça verbal.
O CISCO
(Tem vez que a natureza ataca o cisco para o bem.)
Principais elementos do cisco são: gravetos, areia,
cabelos, pregos, trapos, ramos secos, asas de mosca,
grampos, cuspe de aves, etc.
Há outros componentes do cisco, porém de menos
importância.
Depois de completo, o cisco se ajunta, com certa
humildade, em beiras de ralos, em raiz de parede,
Ou, depois das enxurradas, em alguma depressão de
terreno.
Mesmo bem rejuntado o cisco produz volumes quase
sempre modestos.
O cisco é infenso a fulgurâncias.
Depois de assentado em lugar próprio, o cisco
produz material de construção para ninhos de
passarinhos.
Ali os pássaros vão buscar raminhos secos, trapos,
asas de mosca
Para a feitura de seus ninhos.
O cisco há de ser sempre aglomerado que se iguala
a restos.
Que se iguala a restos a fim de obter a contemplação
dos poetas.
Aliás, Lacan entregava aos poetas a tarefa de
contemplação dos restos.
E Barthes completava: Contemplar os restos é
narcisismo.
Ai de nós!
Porque Narciso é a pátria dos poetas.
Um dia pode ser que o lírio nascido nos monturos
empreste qualidade de beleza ao cisco.
Tudo pode ser.
Até sei de pessoas que propendem a cisco mais do
que a seres humanos.
INFANTIL
O menino ia no mato
E a onça comeu ele.
Depois o caminhão passou por dentro do corpo do
menino
E ele foi contar para a mãe.
A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é que
o caminhão passou por dentro do seu corpo?
É que o caminhão só passou renteando meu corpo
E eu desviei depressa.
Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.
Eu não preciso de fazer razão.
ASCENSÃO
Depois que iniciei minha ascensão para a infância,
Foi que vi como o adulto é sensato!
Pois como não tomar banho nu no rio entre pássaros?
Como não furar lona de circo para ver os palhaços?
Como não ascender ainda mais até na ausência da voz?
(Ausência da voz é infantia, com t, em latim.)
Pois como não ascender até a ausência da voz —
Lá onde a gente pode ver o próprio feto do verbo —
ainda sem movimento.
Aonde a gente pode enxergar o feto dos nomes —
ainda sem penugens.
Por que não voltar a apalpar as primeiras formas da
pedra. A escutar
Os primeiros pios dos pássaros. A ver
As primeiras cores do amanhecer.
Como não voltar para onde a invenção está virgem?
Por que não ascender de volta para o tartamudo!
POEMA
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.
SOBRE IMPORTÂNCIAS
Uma rã se achava importante
Porque o rio passava nas suas margens.
O rio não teria grande importância para a rã
Porque era o rio que estava ao pé dela.
Pois Pois.
Para um artista aquele ramo de luz sobre uma lata
desterrada no canto de uma rua, talvez para um
fotógrafo, aquele pingo de sol na lata seja mais
importante do que o esplendor do sol nos oceanos.
Pois Pois.
Em Roma, o que mais me chamou atenção foi um
prédio que ficava em frente das pombas.
O prédio era de estilo bizantino do século IX.
Colosso!
Mas eu achei as pombas mais importantes do que o
prédio.
Agora, hoje, eu vi um sabiá pousado na Cordilheira
dos Andes.
Achei o sabiá mais importante do que a Cordilheira
dos Andes.
O pessoal falou: seu olhar é distorcido.
Eu, por certo, não saberei medir a importância das
coisas: alguém sabe?
Eu só queria construir nadeiras para botar nas
minhas palavras.
O CATADOR
Um homem catava pregos no chão.
Sempre os encontrava deitados de comprido,
ou de lado,
ou de joelhos no chão.
Nunca de ponta.
Assim eles não furam mais — o homem pensava.
Eles não exercem mais a função de pregar.
São patrimônios inúteis da humanidade.
Ganharam o privilégio do abandono.
O homem passava o dia inteiro nessa função de catar
pregos enferrujados.
Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.
Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.
Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser.
Garante a soberania de Ser mais do que Ter.
lindo paulinho, adorei. o tempo voou, queria ter dito, ouvido e lido tanta coisa mais. Ah, bebido tb. Tinha um whisky especial que esquecemos de beber.
voou pq não houve pressa. De sua parte ainda menos. Pra que tanta pressa? Cumprir prazos, em grande parte do tempo, sem sentidos. é a razão, sensatez caçoadas pelo Manoel.
Como lembrança do nosso momento me agarrei ao livro, levei para o trabalho, como agora, estou com ele aberto. Não pude contratá-lo para ler para mim, mas uma coisa me lembrou você.
A TARTARUGA
Desde a tartaruga nada era veloz
Depois é que veio o forde 22
E o asa-dura (máquina avoadora que imita os pássaros, e tem por alcunha avião).
Não atinei até agora por que é preciso andar tão depressa.
Até há quem tenha cisma com a lesma porque ela
anda muito depressa.
eu tenho.
A gente só chega ao fim quando o fim chega!
Então pra que atropelar?
Beijos,
Flávio
meu amorzinho,
sou eu quem agradeço.
e adorei o poema (“a tartaruga”)! porque isso aqui tem a ver com o que você diz de mim: que sou o “homem lento” do milton santos (rs). acho tão bonito, fico tão comovido…
e você não precisa me contratar para ler poesia. isso eu faço de graça, sempre, por você e para você, com o maior dos prazeres. 😉
beijo GRANDE, lindão!
My love,
ler as suas palavras é um prazer imenso, mas ouvi-lo recitar as mesmas é um privilégio.
Ainda mais com umas boas doses de Jack Daniels nas ideias. (rs)
O encontro foi, como você disse, como sempre, MARAVILHOSO.
Quando será o próximo?
Você e Flavinho são indispensáveis na minha vida.
Um grande beijo do amigo que te ama, te admira e está com você para o que der e vier.
ai ai ai (rs)… my lovely boy,
o que dizer (rs)?…
te amo! agora & sempre.
beijo GRANDE!
adorei o blog, e adorei ler o amor entre vcs…
ô, adriana,
bom saber que você gostou do blog! volte sempre!
a casa é nossa!
beijÃO!
Adoro o domingo pela sua desimportância. Domingo é a poesia manoelesca da semana. É quando a gente garimpa cisco e e dentro do cismo, acha gema de carvão. Diamante dos olhos. Bom é ter barco que me traga aqui e nade em tanto amor gratuito.
Beijo Paulinho, Flavinho, Cesinha e Dri. Sou vossa íntima,
Que maravilha as suas palavras, Bianca!
Adorei a visita! Volte mais vezes, sempre!
Beijo grande!