O que é poesia para você?
A arte da vida. A arte da palavra. Uma gaúcha linda por quem estou apaixonado. Na verdade, as três coisas juntas. O resto é literatura.
(resposta do poeta Fabiano Calixto à pergunta de Edson Cruz)
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benvindos,
abaixo,
uma seleção de poesias de um poeta com quem compactuo uma série de afinidades.
fabiano calixto é um autor de inteirezas. sua poética sabe o lado bom e doce da vida, sabe o jeito delicado das coisas, mas o seu olhar não perde de vista o lado cariado e violento do mundo.
calixto sabe que a vida é bela, que é linda, mas que, para vivê-la, precisa de uns tantos “band-aids” para os machucados & cortes & feridas que surgem durante os nossos percursos.
o poeta entende que o gosto amargo de determinadas coisas não invalida o gosto saboroso de tantas outras. é como se calixto, como diz um verso do caetano veloso, arquitetasse uma estrutura poética sempre buscando o belo e o amaro.
(sempre buscando a inteireza, buscando a totalidade dos acontecimentos: a existência não é somente boa como também não é de todo ruim. a existência é uma mescla dessas duas vertentes.)
portanto, na obra deste jovem e belo poeta tudo cabe:
o descaso social, a pobreza material, a indiferença de alguns bem abastados (economicamente) para com aqueles que moram do lá de lá do quarteirão, fodidos e sem muitas perspectivas de melhoria sócio-econômica. (a tal democracia: a quem serve?)
a beleza de amar, em poemas dedicados ao amor de amantes, dedicados à atenção (redobrada) que nos desperta o objeto de desejo (um maravilhoso escândalo!).
a saudade de quem partiu, num belíssimo poema intitulado “juntando gravetos”, que aproveito para dedicar ao meu pai, o grande paulo sabino, o homem mais bem humorado que conheci (com quem não encerro diálogo), pois me vejo muito nos versos e, de certa maneira, ao meu papai também.
a admiração por artistas que o comovem, que comovem o bardo, como no lindíssimo “e-mail para adriana calcanhotto”, uma prosa cheia de janelas abertas a várias paisagens, um canto extra-ordinário, onde calixto confessa enxergar a canção como um poderoso antídoto contra a melancólica existência.
o fascínio pela palavra no alegórico “obtuário literário com figuras de gatos e ratos”, em que é decretada a morte dos poetas, abocanhados pelos tantos “ratos” que existem mundo afora, sempre dispostos a atenazar e a azedar a poesia da vida. (porém, por sorte, à quantidade de “ratos”, há uma demanda de “gatos” com colmilhos afiados, prontos para abocanhar os roedores orates e deixar vazar, das suas tripas, as tropas de versos antes aprisionadas.)
nesta seleção, há um poema cujos versos primeiros viraram um lema para mim, porque eles dizem, melhor, porque eles gritam, aquilo que espero de mim:
se eu quebrar com meus sonhos / e só restar o tédio
medonho, / a decrepitude, a tristeza infinita / o monturo
(na vida, na escrita) / nenhuma cia. de seguros / vai ar-
car com o prejuízo / então, / dou um basta à bosta toda
/ redesenho o traço da boca / deito um sorriso lindo para
o mundo / respiro fundo, vou com tudo / porque é assim
(e só assim) que se tem que ir
assim eu vou, senhores. (e assim irei sempre.)
beijo bom, saboroso, em todos!
o preto,
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Sangüínea. autor: Fabiano Calixto. editora: Editora 34.)
BALADETA À MALEDETA
ó vida, minha vida linda
já te botei muito band-aid
já te dei muita colher de chá
muito pão-de-ló
agora só te darei veneno
on the rocks
DE SANTO ANDRÉ AO CAMPO LIMPO: O BRASIL (para Heitor Ferraz)
esta manhã está linda
sob este sol que desliza
sobre os capôs dos automóveis
a quentura alastra por todo o ar
a imundície dessa cidade
(e depois de passar por três,
quatro, talvez cinco mundos diferentes
no estômago carcinomatoso da mesma cidade,
uma pergunta põe sal no café:
que tipo de futuro tem um país como este?)
o festival do morango
regado com o sangue de mais
uma chacina
os ônibus queimados, os olhos inchados de choro
o medo de não ter
o que pôr na marmita
ou o que pôr no caixão
a linha amarela em construção
(sepultando a plebe às pressas)
o Hyundai blindado, o Toyota
a fila imensa de carrinhos de papelão
com seus condutores e seus cães
tecem o trânsito, tramam
o inferno de sua mais
profunda estima
— realmente não sei que futuro isso terá…
estou indo longe demais
da minha cidade, de mim mesmo
sonho demais —
na telinha LCD se vê
uma flor cor de toalha
exalando perfume a um operário gordo
atrás do bigode
com luvas verdes e capacete marrom
os assassinos estão livres
o patrimônio do excelentíssimo senhor presidente da
[república
dobrou
é ano de eleição, tempo de monturo
minha ânsia de vômito dá potentes sinais de vida
meu nojo
não cabe na urna
(mendigos vomitam tíner
na Galiléia do apóstolo)
Estrada do Campo Limpo — julho gélido
muitos olhos tristes dentro do ônibus
(tantos ladrões com filhos pequenos para criar
tantas donas-de-casa com tesão insaciável
a estudante caligrafando a cola
nas deliciosas coxas grossas
de colegial cavala)
será que
quando vêem uma maçã
têm noção de sua gestação
de sua sugestão
do esforço de seu doce suor?
(duas garotas no banco de trás:
“a grávida entrou, né,
e eu nem aí, meu,
gravidez não é doença
quem mandou dar?”)
somos mesmo uns boçais
o real nos doerá para sempre
em tempo de eleição
vomitar tornou-se uma higiene
três idas ao banco implorar pelo assalto
já me pediram voto
não respondi
desviando o rosto de qualquer
em especial a memória
não exalava nem colônia nem canard
chego à Perimetral
a noite continua veloz
ouço um prantear, chove às bicas
ruga ínsita
PEDAÇOS DO ESQUELETO
/ se eu quebrar com meus sonhos / e só restar o tédio
medonho, / a decrepitude, a tristeza infinita / o monturo
(na vida, na escrita) / nenhuma cia. de seguros / vai ar-
car com o prejuízo / então, / dou um basta à bosta toda
/ redesenho o traço da boca / deito um sorriso lindo para
o mundo / respiro fundo, vou com tudo / porque é assim
(e só assim) que se tem que ir // a av. Paulista correndo é
tão engraçada / parece uma cobra de marshmallow / uma
viagem de ácido / uma enguia eletrocutando a língua / os
olhares, os colares, tristes demais / estupefatos, oleosos,
covardes e sem razão / a cavoucar a cidade atrás de um
tostão / ou de um milhão / pobres diabos e diabos ricos
a rastejar / quarteirão a quarteirão / uns com ar condicio-
nado, mp3, Honda, / apartamento mobiliado, aulas de
inglês / outros não / a gente que tem / heliporto / vinho
do Porto / trabalha no Horto / não passa fome nem mor-
to / e a gente que / disfarce a disfarce / ganha apenas o
necessário / para endividar-se /
MUSIKKA (SCRITTI POLITTI)
nenhuma lágrima
desce dos olhos
do mundo pasmo
indiferença
brutal de quem
se orgulha tão
cheio de brio
(e de dinheiro)
filho de deus
enquanto a morte
apenas ronda
a tela da
televisão
e o problema
apenas vive
no lá de lá
do quarteirão
saber viver
mas para quê?
se aquele sábio
grande poeta
um dia disse:
nada é mais belo
do que o que não
existe
UMA HISTÓRIA DE AMOR
Take 1:
Desmond pergunta
jogado no sofá da sala
nocauteado por um litro e meio de conhaque
por onde andará seu amor
Molly tenta arrumar os livros,
os discos, os dísticos
em seu quarto e
indaga ao espelho
a quem serve
a tal da democracia
Take 2:
desaba na cama nem vê que o lençol
é xadrez e que não há mais
cigarros dentro da gaveta
do criado-mudo
interiores habitados por
violência de dissoluções
e ternura
ela caminha na neve
lábios russos e rachados
a água cai e estoura o estuque
repete-se (elegia voz)
a morte
nas trincheiras
(o silêncio é um
único grito de dor
it is said to represent a mirror
E-MAIL PARA ADRIANA CALCANHOTTO
o encanto de quem canta
é o canto que canta na garganta
— algo assim escreveu Goethe
(só que o grande gênio alemão
usou, pelo que li, em vez de encanto,
prêmio (com sentido de pagamento),
no que achei mais delicado
e canoro, usar o substantivo masculino
mais feminino da língua.
até porque encantar, no que
canta o meu pequeno dicionário, pode
ser transformar (pessoa) em outro
ser e quando alguém canta
parece mesmo mudar o rumo
de sua existência, enchendo-se
de um entusiasmo, como se
possuído por deuses — como
disse, em silêncio, Domeneck
o que um amigo lhe dissera
um dia —, incha-se de alegria
por talvez saber-se portador
de um poderoso antídoto
contra a melancólica existência
— cantando eu mando a tristeza embora.
e, como não se crê no que não canta,
tentei fazer com que este poema
cantasse, mas que não fosse
óbvio seu canto (visto que visto-
lhe com uma prosa cheia de janelas),
mas sim um tema extraordinário
a blackbird singing in the dead of night
e, quieta e sangüínea, ao lado,
uma violeta
UM POEMA PARA ELA
sentada no sofá, lendo Greimas,
você se parece com uma garota
da Nova Inglaterra, que testa, com
a ponta do dedo indicador,
num dos vidros da janela (enquanto
os flocos de neve lá fora
parecem seguir os movimentos de seu
raciocínio), uma dificílima
questão matemática,
e ao lado desenha um coração
que nobreza você tem
quando caminha, quando escreve
um artigo e fica me fazendo mil perguntas
que nunca posso responder (você
não deve ter notado que, ao seu lado,
estou sempre com os pés num lago,
onde os peixes vermelhos nadam
sobre enormes rãs e moedas
de prata são lágrimas da civilização
fixas no fundo da água; ou talvez tenha
notado, e, quando me apressa no banho,
dizendo que há de se economizar água
e energia elétrica (um absurdo! — você diz)
e que estamos atrasados para um encontro
com Molly & Desmond, ou para o jantar,
ou algo assim, quem sabe seja a sua forma
de dizer isso
(quando passeamos de mãos dadas
pelas ruas de São Paulo, meu coração
movimenta-se como atravessasse uma
larga avenida na iminência do erro que
faria com que os carros lhe deformassem
para sempre a estúpida geometria, ou,
tal excitação e combate, como se
atravessando um cúmulo-nimbo
almejando alcançar a la décima
esfera de los cielos concéntricos)
seu olhar, não pode imaginar quem
não o prova
a fascinação, o silêncio
flutuantes
numa operação de rigor
DUAS PAISAGENS
(UMA SEM E OUTRA COM VOCÊ)
o gramado verde, árvore imensa
a luz do sol se deita toda aberta
tornando a sintaxe da paisagem
comunicação delicada — fugidia?
talvez a compor entretons
que se indagam (onde sombras
se guardam e depois se saciam),
como das mãos de um
improvável pintor
ponteando seus megapixels
e se você estivesse ali?
se você ali estivesse, então
a luz do sol, ao atravessar
o gramado e despriguiçar-se
sobre seu corpo
tornar-se-ia presa
fácil de pela (maçã
polida no orvalho), e
faria o desespero dos sentidos
de qualquer coisa que a observasse
maravilhoso escândalo
não mais que de repente
deslocamentos monumentais
abririam insensatas crateras
pelas calçadas,
tirariam o fôlego das flores,
destruiriam vidraças,
espremeriam o dia até sua derradeira
gota de suor e magenta
e a máquina do mundo
pararia
diante do seu
sorriso
JUNTANDO GRAVETOS (para Antonio Calixto, com carinho e muita saudade)
Faz um tempo eu quis
Fazer uma canção
Pra você viver mais
John Ulhoa
o silêncio de hoje
toca a quaresmeira lá fora
e, hóspede da perfeição,
torna-se igualmente lilás
é com esse silêncio
que leio suas palavras potáveis
recém-chegadas de longe
— de onde? —
(a dor nos traz anseios
tolos — como fazer a Terra
voltar meses, anos atrás, como fez
aquele herói extraterrestre
do filme e do álbum de figurinhas
que juntos colávamos
em muitas manhãs de domingo —
ou olhar uma estrela
e imaginar que você
dorme em algum lugar
ali por perto —
e nos dá a medida do tempo
e continuamos sem entender
medida alguma, aguardando
o barco retornar de Delfos
para que possamos, também,
nos despedir definitivamente
desse nosso
bosque liliputiano)
dizem que é a última canção
mas eles não nos conhecem
por dentro da tarde
as flautas tomam fôlego
para que canções flutuem
ao redor das árvores
que fazem sombra
para os que se despedem
OBITUÁRIO LITERÁRIO
COM FIGURAS DE GATOS E RATOS
os ratos roeram a vida dos poetas
— livres do peso das letras, os estetas
em outras esferas escreverão, pois,
no cavo, vácuo profundo, sem voz, à foice
(esta persiana a zerar o ar dos distraídos),
não mais poemas, já que lidos os labirintos,
nada mais resta, nada, nem a quem se
amar ou refutar, não esfria, nem aquece,
a luta com palavras já não faz parte de
paixões ou razões puras, nenhum alarde,
nada de metáforas, nenhuma metonímia
— a menina de lá não dá mesmo a mínima.
os ratos, rudes e arrogantes orates,
gorjeiam na goela os corpos dos vates
e, ainda assim, nas estantes, talhados,
ficam os poemas — como nos telhados
gatos de gostos e colmilhos afiados, à leitura
nasal do rastro dos ratos, vigiam venturas.
de um pulo a outro salto, uma gangue
de gatos retalha a noite com sangue
de restos de ratos que das tripas, as tropas
de versos, vazam as mais soberbas sopas.
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