CLARICE ENTREVISTA SCLIAR

(trecho da orelha do livro: Clarice Lispector – Entrevistas.)
 
 
Mais do que uma simples especialidade jornalística, a entrevista é uma verdadeira arte, uma disputa amigável feita de muitas arremetidas e outros tantos recuos, sempre arriscando descambar para a contenda aberta quando o entrevistado sente-se pressionado.
 
O tipo de entrevista realizada por Clarice Lispector, no entanto, não era contaminado por qualquer rasgo de agressividade ou de armadilhas para o entrevistado, sendo, antes, uma agradável conversa, um bate-papo envolvente entre personalidades criativas que se admiravam e se respeitavam. O resultado, com valor de uma verdadeira peça literária, era altamente esclarecedor. Não é de se admirar, pois Clarice não era uma entrevistadora comum, não só em virtude de seu caráter peculiar e distintivo como pelo fato de ela já ser uma escritora consagrada quando iniciou a atividade de entrevistadora. Assim sendo, não seria possível para ela adotar uma pretensa neutralidade jornalística. Sobretudo porque, com freqüência, no entusiasmo da conversa, Clarice acabava emitindo opiniões pessoais e, desta forma, revelando a própria alma ao mesmo tempo que revelava a de seu entrevistado.
 
(…)
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abaixo,
 
mais uma deliciosa e envolvente entrevista, feita pela exuberante clarice lispector, com um dos maiores artistas brasileiros, o pintor & gravurista, além de intelectual, carlos scliar.
 
o que me encanta nesta entrevista é a grande inteligência e o grande conhecimento de scliar. fica claro que o artista é um homem de olhar interessado nas artes, sobretudo de um olhar interessado nas coisas que o cercam.
 
deliciem-se com tamanhas sabedoria & sensibilidade!
 
beijo bom em todos!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Clarice Lispector – Entrevistas. perguntas & comentários: Clarice Lispector. organização: Claire Williams. editora: Rocco.)
 
 
CARLOS SCLIAR
 
 
“Gostaria que meus quadros incutissem
esperança e força a todos.”
 
 
Há muito tempo eu não via Scliar — acho que desde o tempo áureo da revista Senhor — de modo que os primeiros momentos de nosso encontro foram gastos em efusões mútuas de amizade. Eu simplesmente gosto de Scliar. Isso é tão simples. E independente da grande admiração que tenho por ele. Bem, mas havia uma entrevista para fazer, ficamos mais sérios e comecei.
 
Conheço Scliar há muito tempo. Alguém nos apresentou e ficamos amigos. Amigos sinceros, simples e honestos. Entrevistá-lo é fácil porque ele tem palavras claras e um raciocínio rápido. Nenhum pintor é obrigado a ser inteligente. Mas Scliar é e muito.
 
Eu lhe disse: “acho que você está sempre buscando novas formas e novas tintas. Estou certa ou estou errada?”
 
— Sei que estou tentando cada dia compreender melhor o que me cerca. Por isso, na medida em que me aproximo dessa compreensão, talvez tenha que formular diferentemente as coisas. Eu não sei se estou procurando formas novas. Penso que um artista fala sempre na primeira pessoa.
 
(É como primeira pessoa que ele vê o mundo.)
 
 
— Qual é a sua fase atual?
 
— Nunca sei em que fase estou. Sei somente, mais ou menos, aquelas por que passei.
 
(Com isso ele quer dizer que é um intuitivo e não racionaliza as coisas.) 
 
— Quais são os seus pintores preferidos?
 
— Di Cavalcanti, Portinari, Segall, Tarsila, Bonadei e tantos outros de várias gerações que, com seu talento e teimosia, contribuíram para a criação de uma arte brasileira.
 
— O que me diz da falsificação de quadros que anda por aí?
 
— Vem do processo natural das coisas que nos cercam. Quando uma atividade se inicia, se dá lucro honestamente, é claro, vem, sem tardar, uma atividade paralela, em que vale tudo.
 
— Como é que você inventou um ocre tão extraordinário?
 
— Não, eu não inventei nenhuma cor. Os ocres que emprego são todos encontrados nas regiões que cercam Ouro Preto e Itabirito, em Minas. Mas, como uso as cores, Clarice, depende de cada momento.
 
(Suponho que ele se refere à inspiração.)
 
— Você está planejando alguma exposição? 
 
— Tenho, para este ano, uma vasta programação, na qual já estou mergulhado, pintando. Em junho, devo ter uma pequena retrospectiva, cerca de 50 peças, de 1940 a 1977, do meu acervo particular, mostradas no Museu de Arte Moderna da Bahia, organizada pela Fundação Cultural em Salvador. Junto será mostrado também, no mesmo local, meu painel Ouro Preto 360 graus, que pertence a um amigo meu de Brasília. Tenho exposições previstas para Porto Alegre (agosto), Rio (setembro) e Recife (outubro).
 
— Eu soube que você fez doação de quadros seus. É verdade? Para quem?
 
— Venho fazendo doações de quadros não meus, necessariamente, mas de pintores amigos, que respeito, para museus brasileiros. A última doação foi para o Museu de Arte de Resende.
 
— Eu não ligo para a má crítica a meus livros. Pouco importa. E você, Scliar?
 
— Penso que alguém como eu e você teima em realizar seu trabalho nas circunstâncias em que intelectuais e artistas são marginalizados. A gente acaba sobrevivendo, pois a crítica a que você se refere é parte desse processo que tempera quem tem algo a dizer.  
 
— Scliar, desde quando você pinta?
 
— Há o que eu me lembro e há o que me contam. Com dez anos de idade, colaborava na imprensa do Rio Grande do Sul, na página infantil, escrevendo contos e poemas, inventando lendas e, pouco depois, ilustrando esses mesmos trabalhos. Eu nem me dei conta da passagem da ilustração para uma preocupação com os problemas da pintura. Aliás, preocupação de tal ordem, que repeti dois anos de ginásio por não lhe dar a devida importância. Já nessa época, em 1935, eu participava de uma primeira exposição  coletiva em Porto Alegre e depois organizava com amigos pintores a Associação de Artes Plásticas Francisco Lisboa (Aleijadinho). Não demos o nome de Aleijadinho com medo que nos chamassem de os aleijadinhos… Contam que comecei a pintar e a desenhar aos quatro ou cinco anos de idade, quando, desejando aprender a tocar piano, e a família achando que eu primeiro devia aprender a ler e a escrever, vinguei-me riscando todas as paredes internas e externas da casa. Nunca mais parei de fazer isso…
 
— Quer dizer que você poderia ter sido um grande escritor ou um grande concertista, pois grande você seria de qualquer modo. Se você não se encontrasse com a pintura, que faria?
 
— Cinema.
 
— Que tipo?
 
— Aliás cinema eu já fiz. Desde que me conheço fui um fascinado por cinema e devo em parte a meu pai, um homem sequioso de conhecimento e arte que, muito garoto, me levava para assistir a filmes do cinema expressionista alemão da década de vinte a trinta, filmes que produziram tremendo impacto na minha sensibilidade. Anos mais tarde, em São Paulo, meu contato com Paulo Emílio Sales Gomes e pouco depois em Paris também com ele, na Cinemateca Francesa, eu redescobri fantásticas emoções já vividas quando garoto, revendo filmes que guardava perfeitos na memória. Em 1943, no Rio, em contato com Rui Santos, então jovem cinegrafista que trabalhava para “atualidades” e sonhava em realizar filmes de sua autoria, eu me vi convidado para fazer um filme. Realizei, com ajuda de Rui Santos na câmara, um documentário chamado Escadas, sobre o ambiente em que viviam os pintores, meus amigos, Maria Helena Vieira da Silva, e Arpad Szenes. Pretendi mostrar o ambiente em que eles trabalhavam e provar que mesmo as aparentes abstrações ou aparentes dificuldades de leitura em seus quadros nasciam de uma vivência, de um contato íntegro com o ambiente novo que eles refletiam em termos de pintura na sua obra. Como estás vendo, era um filme pretensioso. Resultou num filme bonito como fotografia, misterioso como linguagem e, o fato de ter sido vaiado em muitas sessões, segundo me contaram, me conveceu na ocasião de que…
 
— … tinha feito obra de arte?
 
— Exato. As circunstâncias ajudam a que mantenha este ponto de vista, uma vez que não existe mais uma cópia para provar o contrário…
 
(Nós dois rimos.)
 
— Em 1948, em minha estada em Paris, me convenci de que a pretensão de repetir Leonardo da Vinci era exorbitante e, estando convencido de que talento e pretensão não eram suficientes, decidi me concentrar na pintura, que já o trabalho não seria pouco nesta vida.  
 
Neste momento fomos interrompidos pela chegada da fotógrafa. E depois ele trouxe os quadros para a sala. E, se fosse questão de jurar, eu juraria que Scliar está numa fase nova maravilhosa. Scliar está subindo cada vez mais e experimentando sempre. Mas continua a fazer retratos. Inclusive acha que fazer retratos é uma grande disciplina.
 
Scliar me diz que gostaria de falar sobre a sua responsabilidade.
 
— Acho que quando uma pessoa estrutura sua profissão assume uma responsabilidade para consigo mesma e para com os outros. Creio que você já deve ter percebido que sou um otimista, porque creio nos destinos da humanidade. Isso pode te parecer vago, mas me considero um homem rico de tudo o que os outros construíram para mim. Minha responsabilidade começa no instante em que me dou conta disso e desejo retribuir. Por pouco que eu faça, se conseguir estimular idéias e sentimentos e outras coisas que não sei, alguma coisa estarei construindo.
 
Ficamos algum tempo em silêncio.
 
— Clarice, acho que alguma coisa eu aprendi na Europa, depois de uma primeira viagem como soldado da FEB, quando descobri que a vida é uma coisa fantástica que deve ser vivida todos os instantes: houve então uma primeira modificação substancial em mim e em minha pintura. Até então eu mostrara em meus quadros a minha comoção diante da miséria, o meu protesto contra uma sociedade que criava isso. Na volta da Itália, me vi redescobrindo a beleza de um objeto, a beleza de uma flor, a beleza de um movimento, me vi em idílio com o mundo, com uma saúde que, por mais conspurcada pela sociedade, explodia apesar de tudo com uma força de sol.
 
(Está bem, Scliar, isso me explica em parte como, apesar de nossa forma social, conseguimos dormir de noite.)
 
— Eu não creio, continuou ele, que essa posição faça de minha pintura uma arte alegre. Mas não é uma arte negativa também.
 
Falamos de Djanira. E Scliar disse:
 
— Ela é uma força da natureza. Por isso não há doença que possa abatê-la.
 
(Amém.)
 
Contei que entrevistara Fayga Ostrower, Djanira e ele. Scliar comentou:
 
— São três artistas de formação diversa.
 
Silêncio.
 
— Para mim, que fui um pintor teimoso, mas que não vivia profissionalmente do meu trabalho, vivo, nestes últimos anos, em que encontrei um público interessado, que acompanha tudo o que faço, vivo pois surpreendido até hoje e, muitas vezes, acordando sem compreender exatamente o que está acontecendo. Acho que a comunicação é fundamental e sou um homem que gosta de gente, que tem confiança nos homens que trabalham e produzem tudo aquilo que nos rodeia. O que eu desejaria [Clarice] era conseguir que meus quadros fossem uma espécie de esperanto e incutissem esperança e força a todos.
 
Silêncio.
 
— Todas as coisas que lhe disse não impedem que eu seja um homem isolado. Mas acho que isso é próprio da condição de quem produz uma obra de arte. Penso também que essa mesma obra se multiplica, se amplia e se transforma em algo que eu não podia prever nos olhos dos que me vêem.
 
— Scliar, qual é a coisa mais importante do mundo?
 
— O homem.
 
— Qual é a coisa mais importante para uma pessoa, como indivíduo?
 
— O ser respeitado como homem e o saber respeitar os outros. 
 
— O que é o amor?
 
— É estar integrado nas coisas que me estimulam por todos os poros.

2 Respostas

  1. paulo:
    é sempre bom “rever” o meu camarada carlos scliar. somado
    à clarice, me impressiono mais.
    um grande abraço.
    romério

  2. romério,

    que bom “promover” este seu reencontro com scliar!

    espero que o “prosa em poema” lhe traga outras tantas boas surpresas.

    abraço grande!

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