senhores,
abaixo, linhas escritas em homenagem a um dos maiores poetas da língua portuguesa de todos os tempos:
joão cabral de melo neto.
este poeta gostava de afirmar que seu trabalho com a poesia era estritamente cerebral. o encaixe das palavras, a musicalidade dos versos, as imagens criadas, tudo em joão cabral, segundo o próprio, era cem por cento “transpiração”. o bardo não cria em “inspiração”; cria na poesia como a prática da escrita. sentar e escrever escrever & escrever. era muito disciplinado.
(não era à toa a ENORME admiração que cabral alimentava pelo poeta francês charles baudelaire.)
eu, até hoje, não consigo essa prática, a da disciplina. sou mais próximo de clarice lispector (não no talento, senhores, mas na forma de criação), que dizia que o seu método de escrever era caótico.
caótico porque não havia método, não havia disciplina. clarice chegava a declarar que não se considerava uma profissional da escrita, mas uma eterna amadora & aprendiz. adorava afirmar que não sabia escrever. eu me sinto assim, exatamente como ela.
portanto, o meu processo criativo atua de um modo muy diferente do modo que atuava em joão cabral. realidades díspares, que se “estranham” (estranham-se pela divergência). e isso não me impede de gostar dos escritores e poetas que trabalham de outra forma.
há quem afirme não gostar de joão cabral exatamente por esta característica que ele fazia questão de salientar: a do “uso cerebral” no centro de tudo, sem apelos a qualquer tipo de emoção ou comoção. tudo, no verso, é milimetricamente estudado. o poeta não erra a direção de sua exata insistência. traz à tona o que era latente , o que era oculto, na voz imanente do poema.
eu gosto de joão cabral, e tenho-o como um dos maiores, exatamente por essa característica. não possuo um senso narcíseo para com a poesia:
é que Narciso acha feio o que não é espelho (“sampa”, caetano veloso).
não enxergo beleza apenas naquilo que me é afim.
gosto das diferenças, aprecio os desencontros. diferenças não nasceram para exclusão, nasceram para complementaridade.
adoro ler poetas com modos de trabalhar o poema diferentes do meu. acho que isso só enriquece a poesia. todos nós, poetas & leitores, ganhamos com as diferenças.
gosto de pensar na peculiar disciplina do poeta e de pensar na precisão cirúrgica do seu traço ao desenhar imagens com as palavras. poeta que não se enebria em fluência, poeta seco, o seu verso diz exclusivamente o que pretende dizer. morro em admirações & respeito, e, com as suas habilidades, tento aprender.
desapegar-se dos pré-conceitos é um saudável exercício, inclusive para ser feito com a poesia.
“paulo sabino, você prefere os escritores mais ‘emocionais’ ou os mais ‘cerebrais’?”
a minha resposta: eu prefiro, sempre, um bom escritor. e o bom escritor pode ser mais emocional ou mais cerebral, não importa.
NADA impede que um poeta “cerebral” produza uma obra extremamente emocionante & emocionada. a princípio, parece um contrasenso, mas não existe contrasenso algum na minha afirmação.
o importante é o resultado final. e, nesse sentido, juntamente com fernando pessoa e carlos drummond, joão cabral nos deixou uma obra imbatível.
(poesia boa, poesia de grandes capacidades poéticas, sempre alucina.)
lê-lo é valer-se de grandes lições da literatura.
lembrem-se disto, pessoas: belezas não nasceram para serem excludentes. belezas nasceram para serem complementares.
aqui, a minha singela homenagem ao mestre, mestre a quem sempre recorro, mestre que sempre procuro.
beijo bom em todos vocês,
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Poemas escolhidos. autora: Sophia de Mello Breyner Andresen. seleção: Vilma Arêas. editora: Companhia das Letras.)
DEDICATÓRIA DA SEGUNDA EDIÇÃO
DO CRISTO CIGANO A
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
I
João Cabral de Melo Neto
Essa história me contou
Venho agora recontá-la
Tentando representar
Não apenas o contado
E sua grande estranheza
Mas tentando ver melhor
A peculiar disciplina
De rente e justa agudeza
Que a arte deste poeta
Verdadeira mestra ensina
II
Pois é poeta que traz
À tona o que era latente
Poeta que desoculta
A voz do poema imanente
Não erra a direcção
De sua exacta insistência
Não diz senão o que quer
Não se enebria em fluência
Mas sua arte não é só
Olhar certo e oficina
E nele como em Cesário
Algo às vezes se alucina
Pois há nessa tão exacta
Fidelidade à imanência
Secretas luas ferozes
Quebrando sóis de evidência
VI
A noite abre os seus ângulos de lua
E em todas as paredes te procuro
A noite ergue as suas esquinas azuis
E em todas as esquinas te procura
A noite abre as suas praças solitárias
E em todas as solidões eu te procuro
Ao longo do rio a noite acende as suas luzes
Roxas verdes e azuis
Eu te procuro
A palavra se encontra, e estes encontros se dão na vida, e podem ser imediatos, mas também podem ser anos e anos a fio…singelo encontro em homenagem…Sophya talvez molha(por ser do fundo do mar as suas palavras molhadas) a terra de Jõao Cabral…um encontro de generosidades e de fusão da genialidade destes ícones da literatura…e que sensibilidade você, vocês, publicarem esta beleza!!!parabéns!!!
fernando,
muitíssimo obrigado por suas palavras!
espero que você visite o “prosa em poema” sempre!
abraço grande!