SÃO PAULO

__________________________________________________________________________

falam em “feiúra” para definir esta cidade.

 

falam em “fealdade”, em “bruteza de pedra” — selvagem (a célebre “selva de pedra”).

 

falam que não há belezura de paisagem, que não há formosura de natureza, pura, no azul a pino, no pleno sol, ao mar que ondula.

 

falam de lêmures (para os antigos romanos, espectros de pessoas mortas que atormentavam os vivos) sonados, falam de uma (talvez) diana flechadora (na mitologia grega, deusa da lua e da caça, guerreira), de dríades (na mitologia grega, ninfas, divindades que habitam rios, fontes, lagos, montes & bosques) sem estâmina, sem capacidade vital de resistência, anoréxicas, para além das pistas duma famosa avenida, num falso templo, num trianon trivializado: um “paul (villon) fantasmal”.

 

falam de lugares absolutos, debaixo dos viadutos, e de transeuntes exsurtos, isto é, de transeuntes soerguidos, levantados, bruscamente, inesperadamente, das latrinas vesperais cor de urina, que caminham das sentinas dissolutas.

 

falam que esta cidade é sem beleza de paisagem, com seus rios sem ninfas, que correm de costas para o mar que não é mar, um mar desaguado, um mar ressequido, e que desembocam, naufragam, num asfalto negro tinto.

 

porém,

 

confesso que amo essa fereza e sua beleza impura, amo a perversa aspereza de água-tofana (veneno concentrado em arsênio, muito utilizado na itália entre os séculos 15 e 17), a perversa aspereza de baudelaire (e suas flores do mal), a perversa aspereza de corrosão e azedume de couro cru — e fecho-ecler.

 

amar essa fereza e sua beleza impura, amar a cidade como a uma mulher de coração minado, mulher de coração cujo terreno, por estar repleto de minas, é perigoso demais para se andar, para passos, para caminhada.

 

a cidade como a mulher de coração minado, como uma fera, como a leo–parda, ou como a leo–nesa, ou como a tigresa, encarcerada no armário hermético do concreto (do concreto: do que é real, do que é existente; do concreto: do que diz respeito ao verso concreto; do concreto: do cimento armado com vigas de ferro, que arma as formas, as curvas, as silhuetas, da cidade).

 

esta cidade & seu charme de pantera acerada, isto é, seu charme de pantera revestida, de pantera guarnecida, de aço, à espreita nas esquinas, sempre alarmada, sempre em estado de alerta (o alarme vermelho, atenção redobrada).

 

esta cidade, esta dona pétrea, esta beleza ferina, esta executiva da saia cinza me embebe até a medula.

 

a cidade, com sua graça petrina, graça multi–vária, multi–tudinária (graça de multidão variada). cidade que não é minha, mas que admiro.

 

por isso, pela admiração, por apreciar-lhe o garbo, vejo-a por um lado de dentro, por um ângulo diferente, por um doce recesso (por um intenso re–excesso).

 

a cidade & sua beleza antiproust, beleza sem memória do passado, beleza que não sai em busca do tempo perdido, beleza sem olhar parado (olhar presente no passado), beleza sem anamnese, sem recordação, sem o cheiro de “madeleine” que reaviva a reminiscência da infância.

 

a beleza da cidade é im–passiva (é ativa, a sua beleza está em plena atividade), é des–mêmore (é des–lembrada, é sem memória), é im–plosiva (explosões em–si, explosões internas: a auto-detonação), no tenso & absurdo dilema (um dilema difícil, um tópico utópico) de tê-la, de vê-la, como:

 

a memória do futuro.

 

se o futuro, uma memória, essa memória é são paulo.

 

são paulo, por seu avanço tecnológico, por seu desenvolvimento econômico, por sua capacidade de estar à frente, de ser moderna, de ser “futurista”, é já a memória de tudo o que representa: o tempo seguinte, o tempo à frente: o tempo futuro.

 

aqui pousa a minha gratidão à terra da garoa, terra que me acarinha com muitas coisas bonitas, muitas coisas bacanas — na música, na literatura, nas artes cênicas, nas artes plásticas —.

 

são paulo: my love… (joão gilberto, num disco seu, ao vivo, antes de cantar “desafinado”, profere essa tão singela declaração à cidade. eu fico muito comovido & contente toda vez que a escuto; acho-a forte, significativa, saída da boca de um baiano — e que baiano!)

 

um beijo em todos!

outro, GRANDE, em sampa!

paulo sabino / paulinho.

 

(após o poema, um vídeo da metrópole e a canção “sampa”, de caetano veloso,  custurando as imagens.)

__________________________________________________________________

 

(do livro: Entre milênios. autor: Haroldo de Campos. editora:Perspectiva.)

 

 

SÃO PAULO

 

 

1.

feiúra (falam em)

para definir esta

cidade

 

fealdade

bruteza

de pedra

selvagem

 

não beleza pura

não belezura de

paisagem

(é o que falam)

 

gume de granito

de pedra

bruta

contra a natura

não formosura

de natureza

pura

no azul a pino

no pleno sol

ao mar que ondula

 

feiúme de solda

metálica e

betume

não deslumbre

de água-marinha

de afogueado topázio e

múrmura turmalina

 

2.

mas eu

paulista paulistano

confesso que amo

essa fereza e digo:

beleza impura

terrível de “bela-

-dama-sem-mercê”

perversa aspereza

de água-tofana e baudelaire

de corrosão e azedume

de couro cru e fecho-ecler

da qual (como de uma

mulher de coração minado)

tenho gana e ciúme

 

tigresa encarcerada

ou leoparda ou

leonesa

presa em jaula

esquálida

de armado esqueleto

fechado no armário

hermético

do concreto

 

3.

sob topos risca-céus

de elétricas antenas

agora

à luz de lua lampadófora

que pinga no olho furta-

cor dos semáforos de rua

e coa-se no neon noctâmbulo

entressonâmbula

sonhando com o

mirante sem miragem de um (fanado)

trianon trivializado

(no outro lado do paul

fantasmal de lêmures

sonados

além das pistas

da avenida paulista

num falso templo

de uma (talvez) diana

flechadora

dríades sem estâmina

anoréxicas

fazem dieta

de uma garoa

que não há)

 

4.

enquanto

de lugares absolutos

debaixo dos viadutos

transeuntes exsurtos das

cor de urina

vesperais latrinas

das sentinas dissolutas

caminham

 

5.

esta cidade

sem (é o que falam)

beleza de paisagem

com seus rios sem ninfas

que correm de costas para o mar não-mar

e naufragam num asfalto negro tinto

 

6.

esta cidade

esta dona pétrea

esta

de beleza ferina

executiva da saia cinza

me embebe até a medula

de uma dulceamara ternura

entre fera e bela

entre estrela e estela

esta

com sua graça petrina

multi-

vária multi-

tudinária

cidade

minha

que a vejo por um lado

de dentro por um

ângulo avesso

por um doce recesso

só visível a quem

percebe seu charme

de acerada pantera

à espreita no alarme

vermelho das

esquinas

 

7.

beleza (confesso) que me

enruste

beleza antiproust

sem

memória do passado

sem olhar parado sem

anamnese ou madeleine

im–passiva

des–mêmore

im–plosiva

no tenso (que

cultiva) dilema u-

tópico no paradoxo

absurdo de uma

(porventura)

memória do futuro

_____________________________________________________

(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: Circuladô Vivo. artista & intérprete: Caetano Veloso. canção: Sampa. autor: Caetano Veloso. gravadora: PolyGram.)

Publicidade

6 Respostas

  1. Paulinho,

    Esse poema de Haroldo é belíssimo! Amo-o! Grato!

    A. Nunes.

    • é lindo demais!

      sampa merece!

      beijo!

  2. Caro amigo, parabéns pelo texto. São paulo ficou mais bela ainda com sua poesia.
    A música que o amigo se refere, João Gilberto – São Paulo My Love, nunca tive oportunidade de escutar.
    O amigo saberia me informar onde poderia encontrar esta música na Net?
    Grato pela atenção e mais uma vez parabéns pela publicação, a qual encheu meu coração de orgulho e amor por esta cidade.
    Wal Finocchiaro

    • wal,

      que MARAVILHA saber que este post serviu a tal causa, que comovente!

      espero a sua visita sempre!

      valeu as suas belas palavras!

      abraço GRANDE!

  3. wal,

    mil perdões. esqueci de responder sobre a canção.

    seguinte: na verdade, “são paulo, my love” é uma declaração de amor que o joão gilberto faz à cidade (na íntegra, a declaração é: “adoro são paulo, são paulo, my love”), num disco seu ao vivo, lançado na década de 90.

    a declaração é feita antes do joão cantar a célebre “desafinado”.

    abraço GRANDE!

  4. essa foto é um espetáculo!
    quero saber quem registrou ela e parabenizar.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

%d blogueiros gostam disto: