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falam em “feiúra” para definir esta cidade.
falam em “fealdade”, em “bruteza de pedra” — selvagem (a célebre “selva de pedra”).
falam que não há belezura de paisagem, que não há formosura de natureza, pura, no azul a pino, no pleno sol, ao mar que ondula.
falam de lêmures (para os antigos romanos, espectros de pessoas mortas que atormentavam os vivos) sonados, falam de uma (talvez) diana flechadora (na mitologia grega, deusa da lua e da caça, guerreira), de dríades (na mitologia grega, ninfas, divindades que habitam rios, fontes, lagos, montes & bosques) sem estâmina, sem capacidade vital de resistência, anoréxicas, para além das pistas duma famosa avenida, num falso templo, num trianon trivializado: um “paul (villon) fantasmal”.
falam de lugares absolutos, debaixo dos viadutos, e de transeuntes exsurtos, isto é, de transeuntes soerguidos, levantados, bruscamente, inesperadamente, das latrinas vesperais cor de urina, que caminham das sentinas dissolutas.
falam que esta cidade é sem beleza de paisagem, com seus rios sem ninfas, que correm de costas para o mar que não é mar, um mar desaguado, um mar ressequido, e que desembocam, naufragam, num asfalto negro tinto.
porém,
confesso que amo essa fereza e sua beleza impura, amo a perversa aspereza de água-tofana (veneno concentrado em arsênio, muito utilizado na itália entre os séculos 15 e 17), a perversa aspereza de baudelaire (e suas flores do mal), a perversa aspereza de corrosão e azedume de couro cru — e fecho-ecler.
amar essa fereza e sua beleza impura, amar a cidade como a uma mulher de coração minado, mulher de coração cujo terreno, por estar repleto de minas, é perigoso demais para se andar, para passos, para caminhada.
a cidade como a mulher de coração minado, como uma fera, como a leo–parda, ou como a leo–nesa, ou como a tigresa, encarcerada no armário hermético do concreto (do concreto: do que é real, do que é existente; do concreto: do que diz respeito ao verso concreto; do concreto: do cimento armado com vigas de ferro, que arma as formas, as curvas, as silhuetas, da cidade).
esta cidade & seu charme de pantera acerada, isto é, seu charme de pantera revestida, de pantera guarnecida, de aço, à espreita nas esquinas, sempre alarmada, sempre em estado de alerta (o alarme vermelho, atenção redobrada).
esta cidade, esta dona pétrea, esta beleza ferina, esta executiva da saia cinza me embebe até a medula.
a cidade, com sua graça petrina, graça multi–vária, multi–tudinária (graça de multidão variada). cidade que não é minha, mas que admiro.
por isso, pela admiração, por apreciar-lhe o garbo, vejo-a por um lado de dentro, por um ângulo diferente, por um doce recesso (por um intenso re–excesso).
a cidade & sua beleza antiproust, beleza sem memória do passado, beleza que não sai em busca do tempo perdido, beleza sem olhar parado (olhar presente no passado), beleza sem anamnese, sem recordação, sem o cheiro de “madeleine” que reaviva a reminiscência da infância.
a beleza da cidade é im–passiva (é ativa, a sua beleza está em plena atividade), é des–mêmore (é des–lembrada, é sem memória), é im–plosiva (explosões em–si, explosões internas: a auto-detonação), no tenso & absurdo dilema (um dilema difícil, um tópico utópico) de tê-la, de vê-la, como:
a memória do futuro.
se o futuro, uma memória, essa memória é são paulo.
são paulo, por seu avanço tecnológico, por seu desenvolvimento econômico, por sua capacidade de estar à frente, de ser moderna, de ser “futurista”, é já a memória de tudo o que representa: o tempo seguinte, o tempo à frente: o tempo futuro.
aqui pousa a minha gratidão à terra da garoa, terra que me acarinha com muitas coisas bonitas, muitas coisas bacanas — na música, na literatura, nas artes cênicas, nas artes plásticas —.
são paulo: my love… (joão gilberto, num disco seu, ao vivo, antes de cantar “desafinado”, profere essa tão singela declaração à cidade. eu fico muito comovido & contente toda vez que a escuto; acho-a forte, significativa, saída da boca de um baiano — e que baiano!)
um beijo em todos!
outro, GRANDE, em sampa!
paulo sabino / paulinho.
(após o poema, um vídeo da metrópole e a canção “sampa”, de caetano veloso, custurando as imagens.)
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(do livro: Entre milênios. autor: Haroldo de Campos. editora:Perspectiva.)
SÃO PAULO
1.
feiúra (falam em)
para definir esta
cidade
fealdade
bruteza
de pedra
selvagem
não beleza pura
não belezura de
paisagem
(é o que falam)
gume de granito
de pedra
bruta
contra a natura
não formosura
de natureza
pura
no azul a pino
no pleno sol
ao mar que ondula
feiúme de solda
metálica e
betume
não deslumbre
de água-marinha
de afogueado topázio e
múrmura turmalina
2.
mas eu
paulista paulistano
confesso que amo
essa fereza e digo:
beleza impura
terrível de “bela-
-dama-sem-mercê”
perversa aspereza
de água-tofana e baudelaire
de corrosão e azedume
de couro cru e fecho-ecler
da qual (como de uma
mulher de coração minado)
tenho gana e ciúme
tigresa encarcerada
ou leoparda ou
leonesa
presa em jaula
esquálida
de armado esqueleto
fechado no armário
hermético
do concreto
3.
sob topos risca-céus
de elétricas antenas
agora
à luz de lua lampadófora
que pinga no olho furta-
cor dos semáforos de rua
e coa-se no neon noctâmbulo
entressonâmbula
sonhando com o
mirante sem miragem de um (fanado)
trianon trivializado
(no outro lado do paul
fantasmal de lêmures
sonados
além das pistas
da avenida paulista
num falso templo
de uma (talvez) diana
flechadora
dríades sem estâmina
anoréxicas
fazem dieta
de uma garoa
que não há)
4.
enquanto
de lugares absolutos
debaixo dos viadutos
transeuntes exsurtos das
cor de urina
vesperais latrinas
das sentinas dissolutas
caminham
5.
esta cidade
sem (é o que falam)
beleza de paisagem
com seus rios sem ninfas
que correm de costas para o mar não-mar
e naufragam num asfalto negro tinto
6.
esta cidade
esta dona pétrea
esta
de beleza ferina
executiva da saia cinza
me embebe até a medula
de uma dulceamara ternura
entre fera e bela
entre estrela e estela
esta
com sua graça petrina
multi-
vária multi-
tudinária
cidade
minha
que a vejo por um lado
de dentro por um
ângulo avesso
por um doce recesso
só visível a quem
percebe seu charme
de acerada pantera
à espreita no alarme
vermelho das
esquinas
7.
beleza (confesso) que me
enruste
beleza antiproust
sem
memória do passado
sem olhar parado sem
anamnese ou madeleine
im–passiva
des–mêmore
im–plosiva
no tenso (que
cultiva) dilema u-
tópico no paradoxo
absurdo de uma
(porventura)
memória do futuro
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(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: Circuladô Vivo. artista & intérprete: Caetano Veloso. canção: Sampa. autor: Caetano Veloso. gravadora: PolyGram.)
Paulinho,
Esse poema de Haroldo é belíssimo! Amo-o! Grato!
A. Nunes.
é lindo demais!
sampa merece!
beijo!
Caro amigo, parabéns pelo texto. São paulo ficou mais bela ainda com sua poesia.
A música que o amigo se refere, João Gilberto – São Paulo My Love, nunca tive oportunidade de escutar.
O amigo saberia me informar onde poderia encontrar esta música na Net?
Grato pela atenção e mais uma vez parabéns pela publicação, a qual encheu meu coração de orgulho e amor por esta cidade.
Wal Finocchiaro
wal,
que MARAVILHA saber que este post serviu a tal causa, que comovente!
espero a sua visita sempre!
valeu as suas belas palavras!
abraço GRANDE!
wal,
mil perdões. esqueci de responder sobre a canção.
seguinte: na verdade, “são paulo, my love” é uma declaração de amor que o joão gilberto faz à cidade (na íntegra, a declaração é: “adoro são paulo, são paulo, my love”), num disco seu ao vivo, lançado na década de 90.
a declaração é feita antes do joão cantar a célebre “desafinado”.
abraço GRANDE!
essa foto é um espetáculo!
quero saber quem registrou ela e parabenizar.