é preciso estar atento & forte.
é necessário estar sempre bêbedo. para não sentirmos o fardo do tempo, que nos abate e que nos faz pender à terra, é preciso embriagarmo-nos sem cessar.
mas… embriagarmo-nos de quê?
a resposta: de vinho, de poesia ou de virtude, como acharmos melhor. contanto que nos embriaguemos.
e quando sentirmos a embriaguez já atenuada ou desaparecida, é tempo, é hora, é momento, de mais embriaguez.
embriagar-se sem trégua: de vinho, de poesia ou de virtude, como acharmos melhor.
embriagados, a consciência torna-se mais apta a devaneios, a sonhos, a: projetos.
sonhar, almejar, devanear, fantasiar, projetar.
projetos & mais projetos a fim de que a alma, célere, viaje. e não se preocupar com a execução destes. afinal, para quê? de que serve realizar (determinados) projetos, se o projeto, em si mesmo, é um gozo suficiente?
sonhar, fantasiar, projetar, devanear, também às janelas fechadas por que passar. nada de mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais deslumbrante, que uma janela fechada & iluminada.
(naquele quartinho negro ou luminoso a vida palpita, a vida sonha, a vida sofre.)
depois, ao chegar em casa, deitar-se orgulhoso de ter vivido e sofrido em outras criaturas.
viver os nossos projetos, viver, diariamente, as nossas fantasias quotidianas.
ademais, que importa o que venha a ser a realidade colocada fora de mim, se os projetos, se as fantasias quotidianas, me ajudam a viver, me auxiliam a sentir que sou, e o que sou?
embriaguem-se e permitam-se aos projetos ante uma janela encerrada ou aberta à luz das coisas!
beijo afetuoso em todos,
paulo sabino / paulinho.
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(textos originalmente lançados após a morte do autor, em 1869, com o título “pequenos poemas em prosa”.)
(do livro: Poesia e prosa — volume único. organização: Ivo Barroso. tradução: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. editora: Nova Aguilar.)
EMBRIAGAI-VOS
É necessário estar sempre bêbedo. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar.
Mas — de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis.
E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder:
— É a hora de embriagar-se! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.
OS PROJETOS
Ele dizia de si para si, passando num grande parque solitário: — “Que linda seria ela num traje cortesão, complicado e faustuoso, descendo, mergulhada na atmosfera de um belo entardecer, os degraus de mármore de um palácio, diante dos grandes revaldos e dos tanques! Pois ela possui, de nascimento, o ar de uma princesa.”
Mais tarde, passando por uma rua, parou ante uma loja de gravuras, e, encontrando num cartão a estampa de uma paisagem tropical, pensou: — “Não! não é num palácio que eu gostaria de desfrutar de sua cara vida. Nele, não estaríamos em nossa casa. Além disso, aquelas paredes crivadas de ouro não deixariam lugar para dependurar a sua imagem; naquelas galerias solenes não há recanto para a intimidade. Decididamente, lá é que seria bom morar para cultivar o sonho da minha vida.”
E, sempre a analisar com os olhos os pormenores da gravura, continuava mentalmente: — “À beira-mar, uma bela casa de madeira, envolvida por todas essas árvores estranhas e luzidias cujos nomes esqueci… na atmosfera, um odor inebriante, indefinível… na casa, um poderoso perfume de rosa e de almíscar… além, por trás do nosso pequeno domínio, topos de mastros balançados pelo marulho… em torno de nós, para além de um quarto banhado de uma luz rósea tamisada pelos estores, decorado de frescas esteiras e de flores capitosas, com raros assentos de um rococó português, de madeira pesada e tenebrosa (onde ela repousaria tão calma, tão bem abanada, fumando tabaco levemente opiáceo!), para além da varanda, a algazarra dos pássaros ébrios de luz, e a tagarelice das negrinhas… e, durante a noite, para servir de acompanhamento aos meus sonhos, o canto plangente das árvores de música, dos melancólicos filaus! Sim, é lá, verdadeiramente, o cenário que eu procurava. Para que palácios?”
E adiante, caminhando por uma longa alameda, avistou um albergue asseadinho, onde numa janela ataviada de cortinas de chita se debruçavam duas cabeças risonhas. E logo disse consigo: — “É preciso que o meu pensamento seja um grande vagabundo para ir buscar tão longe o que se acha tão perto de mim. O prazer e a felicidade estão no primeiro albergue que nos aparece, no albergue do acaso, tão fecundo em volúpias. Bom lume, faianças vistosas, ceia passável, vinho forte, e uma cama bem larga com lençóis meio grosseiros, mas frescos: que pode haver de melhor?”
E, reentrando sozinho em casa, a essa hora em que os conselhos da Sabedoria já não são abafados pelos zumbidos da vida exterior, disse ele entre si: — “Tive hoje, em sonho, três domicílios, onde encontrei igual prazer. Por que constranger o corpo a mudar de lugar, se a alma viaja tão célere? E de que serve executar projetos, se o projeto é em si mesmo um gozo suficiente?”
AS JANELAS
Aquele que olha, da rua, através de uma janela aberta, jamais vê tantas coisas como quem olha para uma janela fechada. Nada existe mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais deslumbrante, que uma janela iluminada por uma candeia. O que se pode ver ao sol nunca é tão interessante como o que acontece por trás de uma vidraça. Naquele quartinho negro ou luminoso a vida palpita, a vida sonha, a vida sofre.
Para além das ondas de telhados, diviso uma mulher já madura, enrrugada, pobre, sempre debruçada sobre alguma coisa, e que nunca sai de casa. Pela sua fisionomia, pelas suas vestes, por um gesto seu, por um quase-nada, reconstituí a história dessa mulher, ou antes, a sua lenda, que por vezes conto a mim próprio, a chorar.
Se fosse um pobre velho, eu lhe haveria reconstituído a história com a mesma facilidade.
E vou-me deitar, orgulhoso de ter vivido e sofrido em outras criaturas.
Agora, haveis de perguntar-me: — “Estás certo de que essa história seja a verdadeira?” Que importa o que venha a ser a realidade colocada fora de mim, se ela me ajudou a viver, a sentir que sou, e o que sou?
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