abaixo,
cartas trocadas por dois grandes escritores da literatura brasileira. foram muito amigos e se corresponderam por um longo tempo.
aqui,
missivas de quando viviam no “estrangeiro”, de quando residiam fora do brasil.
tanto um como o outro sofreram com a mudança de país — um, para os estados unidos, nova iorque; o outro, para suíça, berna.
nunca vivenciei a experiência de morar fora, nem a curto ou a longo prazo. todavia, por mais desejada & bacana & prazerosa a experiência, acredito que seja um tanto sofrível.
afinal, existimos a partir do convívio social. se existimos a partir do convívio social, podemos concluir que o convívio social representa o nosso “modo de estar no mundo”. o “modo de estar no mundo” relaciona-se intrinsicamente com a cultura a que pertencemos. de tudo que compõe a cultura, a língua é das mais marcantes características.
sou preto, alto, faço um “tipo baiano” (se é que isso, de fato, existe). na bahia, passo tranqüilamente por “local”. até abrir a boca (rs). quando me ouvem falar, a primeira coisa que me dizem, surpresos, é: “ué, você não é daqui?” (rs)
o mesmo ocorreria comigo: por mais que alguém pudesse me parecer carioca, ao falar, pela maneira de falar, pelo sotaque, saberia dizer se a tal pessoa é ou não local.
percebam que trato de sotaque regional, isto é, trato do sotaque de uma mesma língua falada em regiões diferentes do país. imaginem quando se trata de países & línguas diferentes… a percepção do “estrangeiro” é ainda mais nítida.
a língua é minha pátria.
por mais que pudesse me passar por um negro nova-iorquino do brooklyn, lá estando, ao abrir a boca, a máscara, inevitavelmente, cairia.
não acertariam (provavelmente) a minha naturalidade, mas saberiam, certamente, que não sou um negro nova-iorquino do brooklyn.
ser estrangeiro, no mínimo, é a ruptura com o quotidiano demasiadamente conhecido, que, de tão demasiadamente conhecido, nos molda.
(em país estrangeiro, há a ruptura com a língua pátria, com a língua quotidiana, com a língua que nos molda.)
o que nos molda: o demasiadamente quotidiano.
afinal,
me vejo no que vejo.
me olha o que eu olho.
é minha criação isto que vejo.
e eu, eu também sou a criatura do que vejo.
o quotidiano: minha criação & minha criatura.
onde, fora dele, estamos?
respondo: fora dele, estamos no estrangeiro.
as missivas são deliciosas porque re-velam escritores por trás dos escritores.
cartas trocadas entre grandes amigos e carpinteiros de frases & enredos.
como trabalhar acaba por ser a verdadeira moralidade na existência dos dois, os amigos não se dissociam dos escritores que são.
as cartas são literatua pura, literatura in natura.
beijo bom em todos!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Cartas perto do coração. autores: Fernando Sabino e Clarice Lispector. Notas e organização: Fernando Sabino. editora: Record.)
New York, 10 de junho de 1946.
Clarice,
Esta é a quarta carta que inicio para responder a sua. A primeira eu deixei no Brasil, só trouxe a primeira página, que vai junto. A segunda eu rasguei. A terceira eu não acabei, vai junto também. Hoje recebi uma carta do Paulo, dizendo que não tinha mandado até agora a resposta dele. Positivamente somos uns cachorros irremediáveis. Você por favor não ligue para isso não. Pode ter certeza de que não te esquecemos. Ainda ontem me lembrei muito de você porque um americano me perguntou se o meu relógio era suíço. A Suíça existe mesmo? Serão daí mesmo os queijos suíços? Me escreva, Clarice, sou tão cínico que te peço para me escrever, me responder com a pontualidade e a prestreza que não tenho, contando tudo, suas aventuras e desventuras nessa poética Seminarstrasse. Do Brasil não posso te contar nada, senão o que o Paulo me contou hoje na carta dele: que o Pagé* tem tomado aos domingos porres gigantescos, colossais. Que a sensação de um libertino ao acordar na segunda-feira é a pior coisa do mundo. Que houve um comício no Largo da Carioca onde choveu bala sobre os comunistas, mataram um estudante. Que o Rubem Braga vai indo bem. Que num chá que os acadêmicos ofereceram a outros acadêmicos ninguém perguntou por você.
Daqui de Nova York não posso te contar nada além do que você calcula. Outro dia abri um livro do Erico Veríssimo sobre literatura brasileira escrito aqui, mesmo na página em que ele fazia uma referência a você. Tenho sentido muita falta do seu livro que deixei no Brasil, para plagiar uns pedaços quando vou escrever o meu. Tenho tido muitas dores de cabeça, tenho ouvido histórias de espantar. Uma: o homem mais gordo do mundo fez um regime para emagrecer, emagreceu 50 quilos e morreu. Tenho dado muitas gafes aqui com o meu pobre inglês. Uma: entrei num Drugstore para comprar remédio para dor de cabeça e acabei levando uma loção para cabelos. Tenho tido muitas surpresas. Uma: todo mundo aqui em Nova York é brasileiro, é preciso muito trabalho para ir a algum lugar e encontrar um americano. Tenho tido muitos pesadelos. Um: ontem sonhei com um rato encravado na parede, guinchando de dor. Tenho reformado muitos conceitos, por exemplo: o Jayme Ovalle não é tão chato como eu imaginava. Tenho imitado Octávio de Faria em tudo o que ele não faz. Tenho feito descobertas importantes, por exemplo: o pecado é simplesmente tudo o que Cristo não fez. Tenho conhecido sujeitos famosos, por exemplo: Duke Ellington. Tenho tido muita saudade de minha filha. Tenho tido muito pouco dinheiro. Tenho tido muitas oportunidades de ficar calado. Tenho tido muitas decepções com os Correios. Tenho tido cansaço, saudade e calma. Tenho bebido muito, muito, muito. Tenho lido os suplementos dominicais. Tenho tido vontade de voltar. Tenho escrito muitas cartas para você. Tenho dormido muito pouco. Tenho xingado muito o Getúlio. Tenho tido muito medo de morrer. Tenho faltado muita missa aos domingos. Tenho tido muita pena de Helena ter se casado comigo. Tenho tido dor de dente. Tenho certeza que não volto mais. Tenho contado muito nos dedos. Tenho franzido muito o sobrolho. Tenho falado muito com os meus botões. Tenho tido muita vontade de brincar. Tenho feito muitas manifestações de apreço ao Senhor Diretor. Clarice, estou perdido no meio de tantos particípios passados. Estou com vontade de fumar e o meu cigarro acabou, estou com vontade de namorar de tarde numa pracinha cheia de árvores, estou com muitas saudades de mamãe. Aqui na minha frente, na minha mesa do Escritório, tem uma pilha de 1.834 fichas me esperando para ser conferidas. São tão simpáticas, as fichinhas. Me esperam e sorriem burocraticamente: conhecem o meu triste fim. Sorrio também para elas, digo que esperem: agora estou indo para Seminarstrasse.
Só de pensar que você estará lendo esta carta muitos dias depois de ter sido escrita me dá vontade de não mandar. Mas mando, isso é uma desonestidade. Você nos escreveu há um mês. Juro que não faço mais isso, foi só da primeira vez, agora não faço mais. Me escreva que responderei imediatamente. Como vai indo o seu livro? O que é que você faz às três horas da tarde? Quero saber tudo, tudo. Você tem recebido notícias do Brasil? Alguém mais escreveu sobre o seu livro? É verdade que a Suíça é muito branca? Você mora numa casa de dois andares ou de um só? Tem cortina na janela? Ou ainda está num hotel? Oh, meu Deus, Seminarstrasse será simplesmente um hotel? Qual é o cigarro que você está fumando agora? Pipocas, Fernando!**
Clarice, em Belém eu procurei no hotel uma carta do Mário para você, não encontrei. Eu delirava se pudesse te dar essa alegria. Tinha certeza de encontrar e não encontrei.***
Manuel Bandeira é um sujeito muito triste, Clarice. Também não me despedi de muita gente. Também me esqueci de muitas coisas no Brasil. Quando eu era menino chupei uma vez tanta manga verde que fiquei doente de cama por mais de três dias, faltei ao grupo, só vendo. Eu tinha um coelhinho chamado Pastoff. Um dia meu pai pegou o coelho e deu para um amigo, fiquei triste mesmo, chorei muito, papai foi muito mau. A coisa que mais gostava era no tempo de frio sair fumacinha da minha boca. Pipocas, Fernando! Clarice Lispector é uma coisa riscadinha sozinha num canto, esperando, esperando. Clarice Lispector só toma café com leite. Clarice Lispector saiu correndo correndo no vento na chuva, molhou o vestido, perdeu o chapéu. Clarice Lispector sabe rir e chorar ao mesmo tempo, vocês já viram? Clarice Lispector é engraçada! Ela parece uma árvore. Todas as vezes que ela atravessa a rua bate uma ventania, um automóvel vem, passa por cima dela e ela morre. Me escreva uma carta de 7 páginas, Clarice.
Fernando
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*Apelido fraternal de Otto Lara Resende.
**Referência à sua predileção por pipocas, que a levou um dia a me assustar com esta incontida exclamação de alegria infantil, ao passarmos no meu carro em Copacabana diante de um pipoqueiro.
***Entusiasmado com seu romance “Perto do Coração Selvagem”, Mário de Andrade, em conversa comigo, revelou haver-lhe escrito uma carta, que enviara para Belém. Segundo lhe informaram, ela estaria hospedada no Hotel Central com o marido, que cumpriria ali uma missão diplomática especial durante alguns meses, antes de seguirem para Nápoles, noutra missão. Pois quase dois anos mais tarde, detendo-me em Belém a caminho de Nova York, vasculhei a recepção do Hotel Central onde também me hospedei, na ingênua ilusão de encontrar para ela, esquecida num escaninho qualquer, a preciosa carta para sempre perdida.
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Berna, 19 de junho 1946 — quarta-feira
Fernando,
sua carta me surpreendeu tanto! Eu tive a impressão de ter caído numa coisa assim: de jogar verde para colher maduro ou de ir buscar lã e sair tosquiada, ou dois e dois são quatro — eu escrevi para vocês no Rio, na sua casa, e você me responde de Nova York. Eu sabia que vocês estavam lá por alguém que veio dos EEUU e passou por Paris — estive uns 15 dias em Paris — mas pensei que era a passeio. Não cesso de imaginar vocês em Nova York e não sei como. Como é que Heleninha fala no meio da cidade? E você trabalha de noite num arranha-céu? e os arquivos? Só agora é que vejo que vocês no Rio eram uma das garantias que eu procurava. Por que é que todo mundo quer sair do Brasil? E você é espírita, é, Fernando? Então como é que você me pergunta o que eu faço às três horas da tarde? Ou já falamos sobre isso? às três horas da tarde sou a mulher mais exigente do mundo. Fico às vezes reduzida ao essencial, quer dizer, só meu coração bate. Quando passa, vêm seis da tarde, também indescritíveis, em que eu fico cega. Se o telefone toca eu dou um pulo e se me “convidam” eu pareço criança ou cachorrinho, saio correndo e enquanto corro digo: estou perdendo minha tarde.
Mas eu tenho ido de tarde à biblioteca pública. E por estranho que pareça, estou estudando cálculo das probabilidades. Não só porque o abstrato cada vez mais me interessa, como porque eu posso renovar minha incompreensão e concretizar minhas dificuldades gerais. Estivemos em Paris andando desde manhã até de noite. Aquela cidade é doida, é maravilhosa. Não consegui absorvê-la, ter uma idéia só. De volta fomos diretamente para um apartamento novo, ainda novo, tudo encaixotado, estranho, desarrumado. Encontrei cartas de casa e vários recortes de jornal, artigo de Reinaldo Moura, nota de Lazinha Luiz Carlos de Caldas Brito…, várias notinhas, referências a você e a mim em Sérgio Milliet, e em vários. E nota de Álvaro Lins dizendo que meus dois romances são mutilados e incompletos, que Virginia parece com Joana, que os personagens não têm realidade, que muita gente toma a nebulosidade de Claricinha como sendo a própria realidade essencial do romance, que eu brilho sempre, brilho até demais, excessiva exuberância… Com o cansaço de Paris, no meio dos caixotes, femininamente e gripada chorei de desânimo e cansaço. Só quem diz a verdade é quem não gosta da gente ou é indiferente. Tudo o que ele diz é verdade. Não se pode fazer arte só porque se tem um temperamento infeliz e doidinho. Um desânimo profundo. Pensei que só não deixava de escrever porque trabalhar é a minha verdadeira moralidade.
Afinal arranjei emprestada uma empregada que em um dia deu ordem na desordem — ela era uma verdadeira mulher. Uma grande mulher, sem dúvida, chamada Rosa, italiana, que Deus a abençoe.
Hoje passei o dia lendo; às três horas li de novo sua carta e o bilhete de Helena. Diga a Helena que na primeira vez em que nos encontrarmos ela ganha de mim uma caixinha de música. No mesmo dia em que recebi sua carta, recebi uma do Paulo. Carta pequena, cautelosa, quase silenciosa.
Fernando, procure em Nova York, no Consulado, Araújo Castro. Ele é ótimo. Vai lhe parecer calado e fechado, de início. Ele é muito, muito inteligente, bom, e de boa espécie.
São nove horas da noite, mas parece seis da tarde. E eu brilho, brilho sempre — isso deve ser brilho. Na verdade deve ser apenas adaptação ao novo apartamento. Não se pode deixar uma janela aberta, voa tudo; é um lugar onde ainda estão construindo, sem muitas casas. A rua chama-se Ostring e eu sou a pérola de Ostring, não vê? Vocês pretendem mandar buscar Eliana? como vão fazer? Quanto tempo na realidade vão ficar nos EEUU? Paulo diz que vocês ficarão seis meses apenas… Desejo muita felicidade a vocês. Sejam muito felizes: estou com vontade de dar conselhos grandiosos, dizendo: custa um pouco adaptar-se a um lugar novo etc. Fernando, você tem trabalhado? e Helena, o que é que faz? Acabei de passar uma semana das piores em relação ao trabalho. Nada presta, não sei por onde começar, não sei que atitude tome, não sei de nada. Digo a mim mesma: não adianta desesperar, desesperar é mais fácil ainda que trabalhar. Me mande um conselho, Fernando, e uma palavra bem amiga. Desculpe esta carta tola. Respondam depressa e eu mandarei uma muito boa, muito calma.— Quem tinha me falado de Sagarana era o Escorel,* elogiando. Não sei mais nada. E as notícias que recebo do Brasil são as piores. Até pão falta. Vocês devem estar experimentando agora a tristeza de estar num país onde mesmo lentamente tudo tende a melhorar e receber notícias constantes desse jeito. Dá vontade de ser um grande homem e fazer alguma coisa. Certamente teremos alguma revolução. Até o ar lá está precisando disso.
Fernando, Helena, um abraço grande. Me escrevam, agora que vocês sabem quanto pode valer uma carta e sobretudo certas cartas.
Dei um ar de tristeza? não, dei um ar de alegria.**
Clarice
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*Lauro Escorel, escritor e diplomata, amigo nosso.
**Tive o cuidado de conferir esta frase manuscrita na carta original, para confirmar a vírgula depois do “não” — cuja inexistência inverteria por completo o seu sentido. Vai como pequeno exemplo dos equívocos até mesmo tipográficos a que os escritores se expõem.
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