A FLOR

__________________________________________________________________________

hoje,
 
para este que vos escreve, é um grande dia.
 
pois que a minha mãe, a minha cabocla jurema armond, vence as suas sessenta e oito primaveras, lindíssima, como se pode ver na foto; mulher cheia de saúde, de alegria e de bondade.
 
senhores,
 
jurema armond é das pessoas mais amorosas que conheço. o seu entendimento das coisas perpassa o coração, impreterivelmente. entre mim e ela sempre houve um entendimento que se dá na seara do amor.
 
a certeza disto: se hoje o paulo sabino é um homem amoroso, um homem de bem-querer, boa, grande, incomensurável é a responsabilidade da minha cabocla.
 
foi com ela que tudo começou:
 
o prazer pela leitura, estimulado pelas diversas coleções de livros infantis;
 
as idas ao teatro e ao cinema;
 
a paixão pela música brasileira, que teve início em maria bethânia, a GRANDE diva na vida da cabocla (e que tomei para mim). foi bethânia quem me abriu as portas da poesia escrita, ainda bem novinho, com fernando pessoa, o poeta número um da artista;
 
o amor pelo mar: ele veio com ela, com a minha cabocla, que, junto ao meu pai, me adorava levar a praias diversas, mesmo com o seu pavor de mar & ondas (rs). me estimulou a fazer natação, a desenvolver ainda mais a minha relação com água, elemento que me fascina, que me vira a cabeça.
 
volta e meia digo à dona jurema armond, num tom de brincadeira séria (que acho o tom correto para este meu sarro – rs), que o mundo, a humanidade, seria mutíssimo melhor se a conhecesse fundo, se pudesse a humanidade conviver com as suas verdades, com a sua integridade, com a sua capacidade de acarinhar & cuidar.
 
viro o mundo de cabeça para baixo pela felicidade de dona jurema armond. no que de mim depender, o mundo mau não a alcançará nunca.
 
a ela saúdo com esta salva de palavras atiradas ao papel.
 
a homenagem segue com um apanhado de poemas escritos por uma poeta que a dona jurema ADORA.
 
conheci a poeta ainda jovenzinho, assistindo a um programa de poesia na tv. tratava-se de um especial sobre a poeta. fiquei fascinado por aquela “avozinha” de cabelos bem branquinhos, de voz doce & delicada, bem-humorada, contando histórias de sua infância & adolescência num tempo muito antigo, tempo de escravos, de amas de leite, fazenda, rezas & terços, de acentuada religiosidade, de rigores no comportamento social, de castigos corporais, de conservadorismos, de subserviência feminina ao “poder patriarcal”.
 
(se pensarmos bem, esse tempo não parece tão distante deste tempo, infelizmente…)
 
a poeta escondeu a vida toda os seus versos da sua família, que considerava “prestimosa” a mulher dedicada exclusivamente às tarefas domésticas. segundo a família, mulher não nascera para pensar.
 
trata-se de uma poeta nascida em 1889, revelada ao grande público aos 76 anos de idade por ninguém menos que o MESTRE carlos drummond de andrade. o bardo a definiu “diamante solitário”, pois que, a rigor,
 
cora coralina não seguiu escolas nem estilos.
 
foi única na forma de expressar, no seu tempo, a sua poesia.
 
jurema armond também é feita de ineditismo: a sua forma de expressar, no seu tempo, o seu amor. por isso a cabocla me é tão cara: porque rara: porque um diamante solitário.
 
a você, pessoa mais que adorada, os meus parabéns pela data e o desejo dos três “s”: saúde, sorte & sucesso nas realizações!
 
beijo-TITÃ em você, minha flor!
 
um outro grande nos senhores!
 
o filho da dona juju.
_____________________________________________
 
(do livro: Melhores poemas — Cora Coralina. seleção: Darcy França Denófrio. editora: Global.)
 
 
TODAS AS VIDAS
 
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acordada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…
 
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
 
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem-feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
 
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
 
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
— Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
seus vinte netos.
 
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo alegre seu triste fado.
 
Todas as vidas dentro de mim.
Na minha vida —
a vida mera das obscuras.
 
 
OS HOMENS
 
Em água e vinho se definem os homens.
Homem água. É aquele fácil e comunicativo.
Corrente, abordável, servidor e humano.
Aberto a um pedido, a um favor,
ajuda em hora difícil de um amigo, mesmo estranho.
Dá o que tem
— boa vontade constante, mesmo dinheiro, se o tem.
Não espera restituição nem recompensa.
 
É como a água corrente e ofertante,
encontradiça nos descampados de uma viagem.
Despoluída, límpida e mansa.
Serve a animais e vegetais.
Vai levada a engenhos domésticos em regueiras,
                                           represas e açudes.
Aproveitada, não diminui seu valor, nem cobra preço.
Conspurcada seja, se alimpa pela graça de Deus
que assim a fez, servindo sempre
e à sua semelhança fez certos homens que encontramos
                                                                        na vida
— os Bons da Terra — Mansos de Coração.
Água pura da humanidade.
 
Há também, lado a lado, o homem vinho.
Fechado nos seus valores inegáveis e nobreza
                                                reconhecida.
Arrolhado seu espírito de conteúdo excelente em todos
                                                              os sentidos.
Resguardados seus méritos indiscutíveis.
Oferecido em pequenos cálices de cristal a amigos
e visitantes excelsos, privilegiados.
 
Não abordável, nem fácil sua confiança.
Correto. Lacrado.
Tem lugar marcado na sociedade humana.
Rigoroso.
Não se deixa conduzir — conduz.
Não improvisa — estuda, comprova.
Não aceita que o golpeiem,
defende-se antecipadamente.
Metódico, estudioso, ciente.
 
Há de permeio o homem vinagre,
uma réstia deles,
mas com esses não vamos perder espaço.
Há lugar na vida para todos.
 
 
ESTA É A TUA SAFRA
 
Minha filha, junto a teus irmãos não lamentem nem
                                                                 digam,
coitada da mamãe…
Ninguém é coitada, nem eu.
Somos todos lutadores.
 
Se souberes viver, aproveitar lições, escreverás poemas.
Teus cabelos brancos serão bandeiras de paz.
E viverás na lembrança das novas gerações.
 
Não te queixes jamais das mãos vazias que sacodem lama.
E pedaços rudes de um passado morto não sejam
                                                          revividos,
sem mais empenho senão enxovalhar, ferir e destruir.
 
Recria sempre com valor
o pouco ou o muito que te resta.
Prossegue. Em resposta ao néscio
brotará sempre uma flor escassa
das pedras e da lama que procuram te alcançar.
Esta é a tua luta.
 
Tua vida é apagada. Acende o fogo nas geleiras que
                                                           te cercam.
O tardio poema dos teus cabelos brancos.
Recebe como oferta as pedras e a lama da maldade
                                                                humana.
Esta é a tua safra.
 
 
A FLOR
 
Na haste
hierática e vertical
pompeia.
Sobe para a luz e para o alto
a flor…
 
Ainda não.
 
Veio de longe.
Muda viajeira
dentro de um plástico esquecida.
Nem cuidados dei
à grande e rude matriz fecundada.
Apanhada num monte de entulho de lixeira.
 
“Cebola brava” na botânica
sapiente de seu Vicente.
Oitenta e alguns avos de enxada e terra.
Sabedoria agra.
Afilhado do Padim Cícero.
Menosprezo pelas “flores”:
“De que val’isso?”    
Displicente, exato, irredutível.
 
E eu, meu Deus,
extasiada,
vendo, sentindo e acompanhando,
fremente,
aquela inesperada gestação.
 
— Um bulbo, tubérculo, célula
de vida rejeitada, levada na hora certa
à maternidade da terra.
 
                                                                          A Flor…
 
Ainda não.
Espátula. Botão
hígido, encerrado, hermético,
inviolado
no seu mistério.
Tenro vegetal, túmido de seiva.
Promessa, encantamento.
Folhas longas, espalmadas.
Espadins verdes
montando guarda.
 
                                                               Da Flor…
 
A expectativa, o medo.
Aquele caule frágil
ser quebrado no escuro da noite.
O vento, a chuva, o granizo.
A irreverância gosmenta
de um verme rastejante.
O imprevisto atentado
de alheia mão
consciente ou não.
 
Alerta. Insone.
Madrugadora.
 
Na manhã mal nascida,
toda em rendas cor-de-rosa,
túrgida de luz,
ao sol rascante do meio-dia.
No silêncio serenado da noite
eu, partejando o nascer da flor,
que ali vem na clausura
uterina de um botão.
Rombóide.
 
                                                    Para a flor…
 
Chamei a tantos…
Indiferentes, alheios,
ninguém sentiu comigo
o mistério daquela liturgia floral.
Encerrada na custódia do botão,
ela se enfeita para os esponsais do sol.
Ela se penteia, se veste nupcial
para o esplendor de sua efêmera
vida vegetal.
 
Na minha aflita vigília
pergunto:
— De que cor será a flor?
 
Chamo e conclamo de alheias distâncias
alheias sensibilidades.
Ninguém responde.
Ninguém sente comigo
aquele ministério oculto
aquele sortilégio a se quebrar.
 
                                                                             Afinal a Flor…
 
Do conúbio místico da terra e do sol
— a eclosão. Quatro lírios
semi-abertos,
apontando os pontos cardeais
no ápice da haste.
Vara florida de castidade santa.
Certo heráldico. Emblema litúrgico
de algum príncipe profeta bíblico
egresso das páginas sagradas
do Livro dos Reis ou do Habacuc.
 
E foi assim que eu vi a flor.
 
 
MEU EPITÁFIO
 
Morta… serei árvore,
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira.
 
Enfeitei de folhas verdes
a pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.
 
Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.
_________________________________________________________________________
Publicidade

2 Respostas

  1. Parabéns a tal mãe que tal filho teve!
    E que bela selecção de poemas da Cora Coralina

  2. salve a cabocla!!

    muitíssimo obrigado pelas palavras, amelia!!

    é sempre muito bom tê-la por aqui. mesmo.

    beijo bom & GRANDE!

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

%d blogueiros gostam disto: