PANTEÍSMO

 

Vamos chamar o vento
Vamos chamar o vento
Vento que dá na vela
Vela que leva o barco
Barco que leva a gente
Gente que leva o peixe

(trecho da letra-poema “o vento”, autor: dorival caymmi.)
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panteísmo:

doutrina filosófica caracterizada por uma identificação entre deus e o universo, em oposição ao tradicional postulado teológico segundo o qual a divindade transcende absolutamente a realidade material e a condição humana.

deus e o universo são uma única coisa, um só organismo.

se o universo é deus, conclui-se que este é pura materialidade.

sendo pura materialidade, deus não se manifesta de uma mesma forma, pois várias são as formas que compõem o universo:

desde os astros imortais, com o seu silêncio gritado, até o mar e seu tumultuado rebôo; desde a fatal obscuridade da massa inerte até a mente humana.

através de mil formas, mil visões, o universal espírito, que é deus (que significa materialidade), palpita na espiral das criações.

mil formas, mil visões, mil vidas: misteriosa escrita do poema indecifrável que, na terra, se faz de sombra & luz, inconstante, mutante, que não pára, que sempre se agita: o deus imóvel.

o deus imóvel chora na voz do mar, o deus imóvel canta no vento.

o vento, o “ancião-dos-dias”, velho companheiro do mundo, existe desde a sua gênese.

imensa é a voz do vento, que sacudia e dominava o planeta, e que viu o princípio de tudo. encarou o inconsciente face a face, quando a luz fecundou o tenebroso.

e o vento me diz que as coisas no mundo são fecundadas.

fecundadas de idéias — por nós — são as coisas. pois, para vivenciarmos a existência, necessitamos saber, precisamos ter uma idéia do que é existência. para aproveitarmos ou para lamentarmos a vida, precisamos, antes, ter uma idéia, ter um conceito, sobre o que é a vida.

as coisas acabam fecundadas pelas idéias que delas fazemos.

para que um punhado da poeira do chão seja “um punhado da poeira do chão”, este carece tornar-se idéia, carece ser pensado & nomeado por nós.

isto aqui, uma flor; aquilo ali, uma árvore; acima, o céu; por sob, a terra; avante, o mar; além, os astros: o mundo e as nomenclaturas que usamos para lhes dar forma, um “espírito”, uma idéia.

o mundo e as terminologias utilizadas para dar forma, um “espírito”, uma idéia, a fim de que nos surja o mundo, a fim de que se nos apresentem as riquezas da existência.

surgir o mundo diante de nós: pensá-lo & nomeá-lo: mundo que é, ao mesmo tempo, astro & flor, onda & granito, luz & sombra, atração & pensamento.

eis o quanto me ensinou a voz do vento.

beijo carinhoso em todos!
paulo sabino / paulinho. 
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(do livro: Antologia. autor: Antero de Quental. organização: José Lino Grünewald. editora: Nova Fronteira.)
 
 
PANTEÍSMO
 
 
I
 
Aspiração… desejo aberto todo
Numa ânsia insofrida e misteriosa…
A isto chamo eu vida: e, d’este modo,
 
Que mais importa a forma? silenciosa
Uma mesma alma aspira à luz e ao espaço
Em homem igualmente astro e rosa!
 
A própria fera, cujo incerto passo
Lá vaga nos algares da deveza,
Por certo entrevê Deus — seu olho baço
 
Foi feito para ver brilho e beleza…
E se ruge, é que agita surdamente
Tua alma turva, ó grande natureza!
 
Sim, no rugido há uma vida ardente,
Uma energia íntima, tão santa
Como a que faz trinar a ave inocente…
 
Há um desejo intenso, que alevanta
Ao mesmo tempo o coração ferino,
E o do ingênuo cantor que nos encanta…
 
Impulso universal! forte e divino,
Aonde quer que irrompa! e belo e augusto.
Quer se equilibre em paz no mudo hino
 
Dos astros imortais, quer no robusto
Seio do mar tumultuando brade,
Com um furor que se domina a custo;
 
Quer durma na fatal obscuridade
Da massa inerte, quer na mente humana
Sereno ascenda à luz da liberdade…
 
É sempre a eterna vida, que dimana
Do centro universal, do foco intenso,
Que ora brilha sem véus, ora se empana…
 
É sempre o eterno gérmen, que suspenso
No oceano do Ser, em turbilhões
De ardor e luz, envolve, ínfimo e imenso!
 
Através de mil formas, mil visões,
O universal espírito palpita
Subindo na espiral das criações!
 
Ó formas! vidas! misteriosa escrita
Do poema indecifrável que na Terra
Faz de sombras e luz a Alma infinita!
 
Surgi, por céu, por mar, por vale e serra!
Rolai, ondas sem praia, confundindo
A paz eterna com a eterna guerra!
 
Rasgando o seio imenso, ide saindo
Do fundo tenebroso do Possível,
Onde as formas do Ser se estão fundindo…
 
Abre teu cálix, rosa imarcescível!
Rocha, deixa banhar-te a onda clara!
Ergue tu, águia, o vôo inacessível!
 
Ide! crescei sem medo! não é avara
A alma eterna que em vós anda e palpita…
Onda, que vai e vem e nunca pára!
 
Em toda a forma o Espírito se agita!
O imóvel é um deus, que está sonhando
Com não sei que visão vaga, infinita…
 
Semeador de mundos, vai andando
E a cada passo uma seara basta
De vidas sob os pés lhe vem brotando!
 
Essência tenebrosa e pura… casta
E todavia ardente… eterno alento!
Teu sopro é que fecunda a esfera vasta…
Choras na voz do mar… cantas no vento…
 
II
 
Porque o vento, sabei-o, é pregador
Que através das soidões vai missionando
A eterna Lei do universal Amor.
 
Ouve-o rugir por essas praias, quando,
Feito tufão, se atira das montanhas,
Como um negro Titã, e vem bradando…
 
Que imensa voz! que prédicas estranhas!
E como freme com terrível vida
A asa que o libra em extensões tamanhas!
 
Ah! quando em pé no monte, e a face erguida
Para a banda do mar, escuto o vento
Que passa sobre mim a toda a brida,
 
Como o entendo então! e como atento
Lhe escuto o largo canto! e, sob o canto,
Que profundo e sublime pensamento!
 
Ei-lo, o Ancião-dos-dias! ei-lo, o Santo,
Que já na solidão passava orando,
Quando inda o mundo era negrume e espanto!
 
Quando as formas o orbe tenteando
Mal se sustinha e, incerto, se inclinava
Para o lado do abismo, vacilando;
 
Quando a Força, indecisa, se enroscava
Às espirais do Caos, longamente,
Da confusão primeira ainda escrava;
 
Já ele era então livre! e rijamente
Sacudia o Universo, que acordasse…
Já dominava o espaço, onipotente!
 
Ele viu o Princípio. A quanto nasce
Sabe o segredo, o gérmen misterioso.
Encarou o Inconsciente face a face,
Quando a Luz fecundou o Tenebroso.
 
III
 
Fecundou!… Se eu nas mãos tomo um punhado
Da poeira do chão, da triste areia,
E interrogo os arcanos do seu fado,
 
O pó cresce ante mim… engrossa… alteia…
E, com pasmo, nas mãos vejo que tenho
Um espírito! o pó tornou-se idéia!
 
Ó profunda visão! mistério estranho!
Há quem habita ali, e mudo e quedo
Invisível está… sendo tamanho!
 
Espera a hora de surgir sem medo,
Quando o deus encoberto se revele
Com a palavra do imortal segredo!
 
Surgir! surgir! — é a ânsia que os impele
A quantos vão na estrada do infinito
Erguendo a pasmosíssima Babel!
 
Surgir! ser astro e flor! onda e granito!
Luz e sombra! atração e pensamento!
Um mesmo nome em tudo está escrito —
…………………………………………………….
Eis quanto me ensinou a voz do vento.
 
 
1865 — 1874.
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2 Respostas

  1. Paulinho,

    Que coisa mais linda! Adorei! Valeu pela part-ilha!

    Abração,
    Adriano Nunes.

    • que bom que você gostou, meu poeta!

      sempre fico MUITO feliz por saber!

      beijo beijo beijo!

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