uma existência sem sobrevôo:
dentro da vida, apartado da beleza que reside em lótus & sua flor, preso ao labirinto de passos & esquinas seqüentes, fechado em algum gabinete, trancado entre portas, corredores & corrimões para todos os lados, dia & noite, noite & dia, sem conseguir sobrevoar, atracado ao dédalo.
uma existência sem sobrevôo:
um número de pessoas, agora, na imensidão do estreito “agora”, na imensidão do apertado “presente”, em funções as mais diversificadas — ajustando roldanas, ajustando porca em parafuso que faltasse, acertando linha em olho único de agulha —, sem perceber, sem desconfiar que tais funções as ocupam de viver.
são essas as funções que as mantêm concentradas no que nem desconfiam — concentradas em viver, concentradas em se fazerem vivas, pouco antes de dormirem: seja o sono intermitente, seja o sono eterno.
são essas pequenas mecânicas funções que sustentam as pessoas de vida sem sobrevôo, concentradas no que nem desconfiam (concentradas em fazer valer a existência).
um mundo sem sobrevôo:
a construção da realidade se dá através da idéia que fazemos da realidade circundante.
podemos enxergá-la sem nenhuma eternidade sobre telhados, podemos percebê-la sem nenhuma grande novidade — nenhum céu que o de sempre —.
no entanto, idéias se fazem de conceitos que podem ser repaginados, que podem ser reformulados, a cada instante das nossas existências.
nada maior do que a idéia realizada do mundo, idéia que é, a cada minuto, nova legião deslembrada, isto é, a cada minuto, um novo conceito, o acréscimo ou decréscimo de certas constatações, dúvidas, certezas…
nada maior do que a idéia, esta colmeia (casa de abelhas, com seu zunido contínuo, incessante, inquietas, zanzando de um lado a outro, fabricando mel) ávida, esta colmeia simultânea ao mundo, mundo que a colmeia ávida enxerga ordinário, ou extraordinário, ou a mescla das duas qualidades.
a vida seguirá o seu sempre mesmo eterno fluxo. nós passamos e o mundo permanece, independentemente de nós.
tudo o que hoje fascina os nossos pequenos olhos é fruto, é resultado, de um esplendor passado; tudo o que hoje fascina os nossos pequenos olhos é irradiação arrefecida do que fora o mundo, com toda a sua fúria & inospitalidade.
não vimos o início, não participamos da gênese de absolutamente nada; e quando passarmos, seres transitórios que somos, deixaremos tudo como tem de ser: os céus serão os mesmos.
portanto, fazer valer a existência que é nossa.
fazer valer a sua possível história, e que ela consiga acender o estopim do espanto de outras tantas possíveis histórias.
(se obtiver algum êxito nesse sentido, creio já ter valido a pena & ter valido o gozo.)
beijo bem em todos!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Cosmologia. autor: Marcelo Diniz. editora: 7Letras.)
DÉDALO
Dentro, se ainda se pode dizer
dentro o que é apenas contíguo,
passos e esquinas seqüentes,
ou, que se apartasse em lótus,
fechado em algum gabinete,
corrimões para todos os lados,
e onde houver portas, corredores
e onde noite, sonho, e assim
sucessivamente, sem sobrevôo.
LETRAS MÍOPES
Alguém agora — o formigueiro
engarrafado nesta noite jamais
supunha, somente porque está escrito
em algum granito, em letras míopes,
que jamais o formigueiro suponha —
alguém agora, na imensidão cabível
deste estreito agora, ajusta roldanas,
acerta porca a parafuso que faltasse,
linha em olho único de agulha — qualquer
outro símile de cópula possível que
o mantenha concentrado no que nem
desconfia — pouco antes de dormir.
LEGIÃO
Nenhuma eternidade sobre
telhados, nenhum prédio
absolutamente novo, toda
construção, ruído adaptado
ao trânsito, nenhum céu
que o de sempre, pensamentos
úteis e mosquitos esmagados
nas paredes do elevador,
nenhuma outra vida entre
as formigas que assediam
a despensa, e, nada maior
que essa idéia, a cada minuto,
nova legião deslembrada,
ávida colméia simultânea.
PASMO
Não estime o tempo dos astros,
o fascínio que por certo consome
seus pequenos olhos é esplendor
passado, irradiação arrefecida
do que fora a fúria muito antes
você sonhasse sua possível história,
e os céus serão os mesmos,
bem depois de esquecê-la quem,
por sorte, ao lê-la, por mais sorte,
acenda o estopim de seu espanto.
Paulinho,
Adorei as suas linhas! Os poemas também são muito bons.
Um abraço no Marcelo
E outro em vós-ser!
A. Nunes.
meu poeta,
adorei o final da sua mensagem! coisa mais… poética (rs rs rs)!
os poemas do marcelo são sempre requintados na forma e no conteúdo, né? adoro!
beijo bom & GRANDE!