COGITO ANDAR & COGITO O DIA

na praça enorme, sozinho, um homem, com mãos potentes, aparentando meia-idade, ou pouco menos, de trajes simples, imagem um tanto melancólica, arranca, da noite mãe, às pressas, o filho dia, e, suspendendo-o, o mostra ao mundo.

na mesma enorme praça, um outro homem, com suas mãos cansadas, pega o dia, fedelho, abre-lhe os olhos, e, em voz pausada, lança-lhe à cara o seu desafio derradeiro: por ser, a este homem, o dia uma criança enfadonha, um menino chato, ou ele, o filho da noite mãe, decifra o homem-esfinge ou, então, que o devore e o finde.

na mesma enorme praça, dois homens e os seus modos de encarar a cara do dia: um, às pressas, arrancando-o rapidamente do colo noturno-maternal. o outro, cansado, vendo-o como um menino chato, enfadonho, e pedindo para que, se não decifrado, seja devorado, seja findado.

no “meio” do dia, no meio da vida, no meio de nós: a consciência de estar vivo:

a auto-evidência existencial do sujeito pensante, ou seja, a certeza que tem o sujeito pensante da sua existência como tal. a isto, chama-se: cogito.

(“cogitar”, o verbo, significa “pensar”, “refletir”.)

a consciência de estar vivo: eu sou como eu sou: pronome pessoal intransferível do homem que iniciei, e que persiste na iniciação contínua.

eu sou como eu sou, e o sou no “agora”, no “já”, no “neste instante”: no presente, no hoje.

eu sou como eu sou (o espelho), isto é, sou o que: sou.

sem grandes segredos nem secretos dentes (para morder & ferir): um “desferrolhado”, um “sem ferrolho”, isto é, um sem tranca que feche, com segurança, portas & janelas da alma, janelas & portas que saiam para a vida.

sou um desferrolhado, e um desferrolhado indecente, incorreto, impróprio, inconveniente, obsceno, violador de pudores, feito qualquer pedaço de mim (afinal, a existência, o absurdo de estarmos vivos, garante-nos, somente, a “errância”, isto é, garante-nos somente o caminhar sem saber aonde & por quê).

eu sou como eu sou: observador, atento aos sinais que me chegam, tentando lê-los aqui & ali, nas andanças deste viver.

andar: caminhar sempre em frente, não parar. andar, andei; e prossigo, criando-me & recriando-me, e, assim, ao mundo, à minha cidade — que, no fundo no fundo, me trazem de volta a mim —.

andando, as paisagens vão modificando-se, assim como se modificam muitas das nossas escolhas.

mudo eu, muda você, mudamos nós. (os laços também.)

adeus, meu bem, adeus.

sigo eu, segue você, seguimos nós. é necessário não ficar, é preciso par/tir.

adeus, amor, adeus.

adeus, e vem. vem comigo. vem consigo.

vem, porque não esquecemos, porque não podemos — não devemos — esquecer, que, acima de tudo, queremos cuidar da vida, queremos a vida bem vivida & bem aproveitada.

tem-se que ir, tem-se que par/tir, que zarpar, porque se deseja estar cuidado, porque o objetivo é ser feliz, o objetivo é estar bem.

(que assim seja para TODOS nós!)

beijo GRANDE nos senhores!
paulo sabino / paulinho.
__________________________________________________________________________
 

(do livro: Torquatália — do lado de dentro. organização: Paulo Roberto Pires. autor: Torquato Neto. editora: Rocco.)
 
 
DIA
 
Na praça enorme
sozinho, o homem
quase grisalho
sapatos pretos
camisa branca
gravata velha
terno surrado,
com mãos potentes
o filho do dia
arranca às pressas
da noite mãe
e suspendendo-o
o mostra ao mundo.
 
Na mesma praça
num outro banco
sozinho, um homem
pega o fedelho
com mãos cansadas,
abre-lhe os olhos
e em voz pausada
lança-lhe à cara
seu desafio
mais derradeiro:
 
“Ou me decifras
ou me devoras,
menino chato.”
 
 
COGITO
 
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
 
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
 
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
 
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim
 
 
ANDARANDEI
 
não é o meu país
é uma sombra que pende
concreta
do meu nariz
em linha reta
não é minha cidade
é um sistema que invento
me transforma
e que acrescento
à minha idade
nem é o nosso amor
é a memória suja
a história
que enferruja
o que passou
 
não é você
nem sou mais eu
adeus meu bem
(adeus adeus)
você mudou
mudei também
adeus amor
adeus e vem
 
quero dizer
nossa graça
(tenemos)
é porque não esquecemos
queremos cuidar da vida

2 Respostas

  1. Coisa linda, preto.

    Salve, salve a Torquatália.

    Beijos.

    • salve salve, my lovely boy!

      salve o menino infeliz cuja matéria “vida” era tão fina!

      salve torquato e sua metralhadora poética!

      beijo!

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