a grande habitação, um grande lugar para se ter como morada:
na extensão da linha (do papel), um arco aberto de um ponto a outro.
um trânsito de palavras — neste arco aberto de um ponto a outro na extensão da linha — longe-perto nos quasares (o transitar das palavras compete essas díspares distâncias: às vezes, trânsito perto de palavras em quasares, ou seja, nos objetos celestiais semelhantes a uma estrela, cujo espectro apresenta intenso desvio para o vermelho; outras vezes, trânsito longe de palavras nos quasares, nos objetos celestiais, objetos vindos do alto, vindos do corpo celeste, a morada dos deuses & das musas).
no trânsito, a obstinação; no trânsito, o transe: a busca incessante e o abismo no qual se queda, abismo do pulso disparado, e boca e olho:
quedar-se na linguagem;
quedar no mundo, procurando vivenciá-lo de maneira tátil, de poros abertos, onde a pequena morte — o prazer, o gozo — é recebida sem que caibamos em nós, nus, despidos, claros, elucidados, deste lado da parede (do lado em que nos localizamos na vida) desta habitação edificada nas palavras, habitação que, para se fazer, possui parte da parede construída de mundo, construída de entorno, de tudo o que nos cerca e que, justamente por cercar, nos molda.
na construção da habitação, o trabalho é duro, árduo:
para construir, destruir destruir destruir,
como quem limpa arquivo a plenos pulmões, sem sombra de deixar vestígio.
(lapidar o poema. lançá-lo lindo à língua.)
cuidar as palavras, assistir os versos: ou sobrevivem, robustos, ou morrem, incapacitados.
deletar traste, tirar o pó, devassar cantos, lavar a seco: escodar o poema-pedra, poema mineral, o poema duro, bruto, cru: até restar caroço no texto ossudo.
um nada fica sob a língua, um travo na boca, um travo nas palavras, um travo no que restou — no resíduo — do (tanto) que se pretendia: um nada instalado desde o começo.
no fim de tudo, por mais absurdo que possa parecer, este “sentimento”, esta “sensação”, persiste: um nada fica sob a língua, resta sem contraste, sem sobressair, sem destaque, sem realce, e arde.
esta pode ser a sensação final. todavia, a sensação final não necessariamente — e, no caso dos grandes escritores, quase nunca — corresponde ao resultado final obtido.
na imensa maioria das vezes, os grandes autores conseguem soerguer magníficas habitações, construções que funcionam como suntuosos aufúgios, verdadeiros refugioásis ao olhar de quem busque fagulhas de luz, resíduos luminosos para sua existência, resíduos luminosos para trilhar o rumo, rumo do qual se deve ser íntimo, ser vizinho (lembrem-se de que é com o mundo, meia-parede, que forjamos a nossa habitação), sabendo que tal vizinhança pode doer, pode machucar.
(afinal, por mais alegrias, viver é doído, inevitavelmente.)
cavemos & fundemos as melhores moradias possíveis!
um beijo nos senhores!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Sete suítes. autor: Antonio Fernando De Franceschi. editora: Companhia das Letras.)
RESÍDUO
destruo inumerável
como quem limpa arquivo
a plenos pulmões
sem sombra de deixar
vestígio
unha roída ao limite
lúnula:
caroço em texto ossudo
em vão deleto
traste e pó
devasso cantos
moo e engano
no enjoo de lavar a seco
um nada fica sob a língua
resta sem contraste
arde:
desde o começo
HABITAÇÃO
arco aberto
na extensão da linha
ponto a ponto
trânsito de palavras
longe
perto nos quasares
abismo do pulso disparado
e boca e olho:
poros
onde recebo
sem caber-me
a pequena morte
nu deste lado da parede
parede-meia:
o mundo
ausente à distância de toque
sou íntimo
e a vizinhança me dói
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