(paulo sabino & armando freitas filho, no lançamento da antologia organizada por heloisa buarque de hollanda. a dedicatória: “para o paulo, sempre presente no meu computador. armando.”)
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armando freitas filho fala de si diretamente da sua central, pelo microfone do corpo, pelo auto-falante dos sentidos, diretamente da sua percepção existencial, e revela que é desse modo que se comunica: é assim que se articula com o entorno, e sua poesia emerge dessa articulação.
vida & poesia, poesia & vida:
o que é escrito na página de pele do poeta, o que é revelado no papel fino do espaço que o bardo ocupa — a letra articulada do seu gesto, o rascunho & as rasuras feitas à unha, feitas na sua vida —, é impresso em folha de papel vegetal: o auto-retrato do autor: o autor/retrato:
ajustando & armando as suas peças, as peças que o compõem vidafora — partes, pedras & passos —, o poeta forma, na sua poética, um seu retrato autoral:
as experiências do homem armando freitas filho, repletas dos dedos do acaso, dedos múltiplos com os seus vários perfis contrários, que vão somando avessos no quebra-cabeça existencial (onde o corpo é uma armadura de lacunas, uma armadura de vãos, em tempo, natural, de pressa & perdas), quebra-cabeça onde se armam, onde se armaram, os erros & hiatos de todos nós.
é este o código de barras de armando freitas filho: ele escreve a sua vida. e o que sai do seu sonho, ou do seu punho, vem pela mesma veia-verve, vem por sua dicção urgente, vem por sua dicção nervosa, pulsante, pungente.
entre o corpo (e suas sensações, e suas vivências, sempre reais) e a alma (o nosso “ânimo”, o espaço do sonho, da idéia), uma voz dependurada, voz que mistura, numa única poção, duas aventuras distintas:
a voz do poema.
e é assim sempre. nunca desistir (dessa trajetória) é o seu sempre lema.
antes da chegada da noite última, da noite que encerra todas & quaisquer possibilidades, antes de virar cadáver, osso, antes de virar pó filho da puta (lembrem-se: “ninguém quer a morte / só saúde e sorte”), segue a voz do poeta assinando tudo, sangria desatada, verve vertiginosa, assinando tudo, mesmo sem ver.
e segue a tudo assinando, mesmo os passos da linguagem no corredor da fala:
assina tudo, até a palavra-silêncio, até a palavra feita da carne do silêncio, até a palavra travada no corredor do linguajar, a palavra cujo percurso não se cumpre e que, por dentro, deflagra um mudo curto-circuito. tudo o que perpassa o poeta, no poeta pousa, e, pousando, se lhe escapa e o vence: não há como prender dentro de si até mesmo a palavra obstruída.
assina tudo:
ainda as palavras arrancadas súbitas, rapidamente, pelos cabelos; a tudo assina, ainda as palavras arrancadas pela raiz, ainda as palavras mudas (além das obstruídas), as palavras que não dizem, as que não querem dizer, nem esclarecer, as que erram no ar, quase sem fôlego, buscando um vôo à voz e qualquer vento para poder pousar.
armando freitas filho, para quem “bato cabeça”, a quem estimo, por quem possuo o mais alto grau de respeito & admiração:
a sua vertente, a sua palavra, é sempre a estreita, rente ao chão, isto é, rente ao mundo, rente às coisas mundanas, e rente à carne, isto é, rente às suas experiências existenciais, rente ao que vive o poeta, por uma vereda, por um caminho íntimo & úmido, tomando, para tanto, o corpo pela raiz, isto é, tomando o corpo pela base, tomando o corpo por “aquilo que provoca, ocasiona ou determina uma atitude, um acontecimento, a existência de algo”, como estampa o dicionário houaiss. tomando, portanto, o corpo pela raiz frontal e viva: fio-terra, chicotexistência de muitas pontas, chicote exatamente múltiplo, e, misturando a engenhosidade & o estudo prévio (o cálculo na vida, na poesia) com a casualidade, com a sorte (o acaso na vida, na poesia), vai no impulso, vai no arranco:
vida & poesia, poesia & vida: dispara, díspare, e pára.
vida & poesia, poesia & vida: em armando freitas filho,
uma única poção.
beijo bom nos senhores!
um outro, especialíssimo, no armando!
paulo sabino.
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(do livro: Melhores poemas. seleção: Heloisa Buarque de Hollanda. autor: Armando Freitas Filho. editora: Global.)
COMUNICAÇÕES
Eu falo de mim — daqui —
desta central
pelo microfone do corpo
por esse fio que vem do fundo
eu me irradio
assim, numa transmissão de
sustos e rangidos
veia e voz, ao vivo, sob tanto
sangue: pantera escarlate
que passa e pisa
e se espatifa nesse chão
pata de lacre
grito, pingo sobre o alvo
tão tátil da minha carne
nos panos
repentinos do meu espanto
nas janelas
onde me debruço sucessivo
e vário, sequência de mim
em fotonovelas
me desdobro — quadro por quadro
nos desenhos
de dentro do que sou e projeto
aos poucos, plano e pausa
para fora
com a vida que me veste
pelo avesso:
filmes de sêmen onde publico
figuras de suor e celuloide
numa lâmina
de velocidade e de lembrança
em fotogramas
de esperas e procuras — falha
folha de slides-células, sopro
e pulso
página de pele em que escrevo
o uso
a articulada letra do meu gesto
o rascunho de unhas e rasuras
feito à unha
nas nuas marcas do meu corpo
no espaço
e nos lençóis da claridade
monograma, silhueta, cadência
e a fala
que se imprime nesta fita
neste sulco
a linguagem como um fim
a linguagem por um fio
e a morte em morse.
AUTORRETRATO
No papel fino do espaço
a minha figura pousa
seus traços e braços:
pedaços, quebra-cabeça
armando as suas peças
partes, pedras e passos:
a cada gesto o contato
tão tátil de fragmentos
que os dedos do acaso
adaptam, múltiplos
com seus vários perfis
contrários, numa soma
de avessos e retalhos
e a imagem sob a pele
é alinhavada: andaimes
de cartas, o castelo
embaralhado pelo vento
que sacode flâmulas
de naipes enventados:
construção de dados
com seus inúmeros
números, lados, ludus
o encontro de cubos
neste espelho de papel
onde o puzzle do corpo
uma armadura de lacunas
em tempo de pressa e perda
armou seus erros e hiatos.
CÓDIGO DE BARRAS
Escrevo a minha vida.
E o que sai do meu sonho
ou do meu punho
vem pela mesma veia
em dicção urgente.
Entre corpo e alma
a voz dependurada
mistura numa única poção
duas aventuras distintas
no fluxo e no pulso.
Nunca desisto, sempre.
“Antes de virar cadáver
osso, pó filho da puta”
vou assinando tudo sem ver
pois se parar não começo mais.
DUAS NOTAS
Os passos da linguagem
no corredor da fala:
esta palavra que suspiro
e não digo: granada de silêncio
entre os dentes, corcel de vozes
galope, impulso, carga
percurso que não se cumpre
e, por dentro, deflagra um mudo
curto-circuito, uma suíte nua
e elétrica, sem pauta nem pausa.
Escrevo o silêncio com a tinta
branca do invisível: aqui está
o que não falo e o que medo
cala: cada letra ou as estrelas
imaginárias sonhando nas entrelinhas.
O que não consigo e persigo
o que persiste, tateia e segue
seu curso — do ápice ao colapso —
o vário fragmento, tudo o que penso
pousa em mim, e me vence.
ARRANCADAS TÃO DEPRESSA
Arrancadas tão depressa
pelos cabelos
pela raiz
da terra última
estas palavras são mudas
trêmulas e íntimas
e erram no ar
quase sem fôlego
buscando um voo para a voz
e qualquer vento para o pouso.
Acabo. Vou pela vertente estreita
rente ao chão e à carne
pela via íntima e úmida
tomando o corpo pela raiz
frontal e viva: fio terra, chicote
de muitas pontas
exatamente múltiplo — venéreo
combinando músculos e números
entre cálculo e acaso
vou no impulso, no arranco
sem ensaio: disparo, desperdício
e paro.
Paulinho,
Bravo! Bom texto! Bons poemas!
Adriano Nunes.
obrigadíssimo, meu poeta das alagoas!
beijo GRANDE!
eu, paulo sabino, muito contente com as linhas por mim recebidas, resolvi deixá-las aqui registradas.
palavras de ARMANDO FREITAS FILHO, palavras que só tenho a agradecer, sobre esta publicação:
“Caro Paulo: muito obrigado por tudo. Por toda essa saudação que me acompanhará, e que me comove tanto. Muito obrigado pela sua presença no POP tão calorosa e pela sua amizade nova em folha. Com o abraço e o aplauso do Armando.”