PENSANDO DEUS

DEUS  (Paulo Sabino)
 
a  mente
do  ente:
demente
mente
que nem sente
 
 
(do livro: Poemas malditos, gozosos e devotos. organização: Alcir Pécora. editora: Globo.)
 
 
NOTA DO ORGANIZADOR  (texto: Alcir Pécora)
 
(excerto)
 
 
A publicação original de Poemas malditos, gozosos e devotos, que ora fecha a coleção de poesia das Obras reunidas de Hilda Hilst pela Editora Globo, deu-se em 1984, novamente graças ao seu amigo e editor Massao Ohno, dessa vez com a colaboração de Ismael Guarnelli. O livro reúne um conjunto de 21 poemas, todos eles compostos na forma de apóstrofes a Deus, isto é, discursos que o interpelam diretamente, como único interlocutor privilegiado do poeta, ainda que se trate de um interlocutor inexistente ou retraído face ao intenso desejo que o busca.
 
São apóstrofes com pleno direito de se nomear “devotas”, como anuncia o título, em função da sincera e empenhada interrogação de um sentido para a ideia de Deus, e, especialmente, do sentido que essa ideia toma na determinação desta poesia em particular. Entretanto, tal interrogação jamais é pacífica ou contemplativa. Se é verdade que grande parte da poesia de Hilda Hilst é largamente construída em torno de uma ideia de Deus, também o é que ela jamais toma a forma de fé, e especialmente jamais a forma do discurso do crente satisfeito com o que conhece ou intui de seu Deus. Nos poemas deste livro, em particular, Deus não é senão dúvida, dor e ameaça do vazio.   
______________________________________________________________________________________________________________
 
deus:
 
pés burilados, luz-alabastro, fino formão, dedo alongado que agarra homens & galáxias:
 
mandou seu filho ser trespassado nos pés de carne, nas mãos de carne, no peito vivo, de carne.
 
deus: vive do grito de seus animais feridos, vive do sangue de poetas, do sangue de crianças, e do martírio de homens & de mulheres santas. cuidado (com ele).
 
se tenho a pedir, não peço. contente, eu mais lhe agradeço quanto maior a distância, e só porisso uma dança, vezenquando, se faz nos meus ossos.
 
quanto mais esquecido por deus, mais agradecido fico.
 
(mandou seu filho ser trespassado no corpo vivo, de carne.)
 
cuidado (com ele).
 
deus: é rígido e mata com seu corpo-estaca. ama, mas crucifica. é sedoso, porém com garras.
 
deus: mastiga o gozo nosso, deixando-nos desamparados de prazer. deus é fel. quase sempre assassino, permitindo a morte dos seus filhos.
 
um tanto da loucura, um tanto da demência divina: cria-nos para o futuro aniquilamento — afinal, foram-me dadas vida & morte —.
 
(eu preferia a grande noite, preferia o silêncio profundo das galáxias, do espaço negro infindo, a esta luz irracional da Vida, sucessão de acasos que resultou no que é a existência hoje.)
 
viver é dorido. viver é difícil. viver é barra, pesa.
 
será que deus, se existe, sente doer-lhe a razão?
 
será que deus, se existe, sente doer-lhe o peito?
 
penso que deus cresce, penso que deus toma vulto, quando o penso. afirmo, sem cerimônias, que vive deus porque eu o penso.
 
se, acaso, não o pensasse, que fogo se avivaria não havendo lenha?
 
sem alguém para pensar deus, ele não existe. a lenha é o que permite a existência do fogo. o homem é quem permite a existência de deus.
 
deus é um pensamento, é um conceito, criado pelos homens, de acordo com o modo destes vingarem o seu tempo neste mundo. portanto, o alimento de deus são os seus servos, são aqueles que se preocupam em manter vivas a imagem & a idéia do que é “divino”.
 
deus é um pensamento, é um conceito, criado pelo homem, isto é: uma idéia deveras pessoal. por ser deveras pessoal, deus é este meu nome que o cria, e que busca evidenciá-lo, no mundo: deus, alá, oxalá, jeová, adonay, eloah, zambi, olorum, …
 
pensar deus, porque uma experiência pessoal, intransferível, é estar só na empreitada.
 
de deus, o que se tem é o silêncio absoluto, silêncio do mundo, silêncio que não nos evidencia a sua existência. não temos dados sobre ele, nem sabemos a sua vizinhança. se existe, então se esconde em sumidouros & cimos, em nomenclaturas não evidenciadas pela lógica matemática. não há provas cabais sobre o seu paradeiro, sobre o seu logradouro.
 
todavia, o que me aconteceria se ganhasse, se conquistasse, deus? minh’alma se esvaziaria? uma hora, como acontece com os homens que ganho, que conquisto, cansaria de deus? se o conquistasse, que coisas ainda desejaria minh’alma?
 
que luz seria, em mim, mais luminosa? que negrume mais negro?
 
se ganhasse deus, não haveria mais sedução, nem ânsias. ele acabaria partindo, partindo lasso em abastanças minhas, isto é, em abastanças do sentir humano, e de novo dormiria.
 
um romance vivido com deus, para que a relação findasse a mesma, de nada valeria (deus, novamente, no seu sono profundo, no seu silêncio mais absoluto).
 
porisso agradecer quanto maior a distância entre mim & ele.
 
deus: criador maior: portanto, criador do mundo:
 
o mundo, feito de ocos, de vazios, de hiatos, feito de moitas estufadas por serpentes, prontas a destilar o seu veneno.
 
deus: o criador de tudo isto: do oco, da moita, da serpente de versos da minha boca.
 
meu deus: a vida não desenhada da minha sede de céus.
 
meu deus: divino nada montado sobre este touro que sou.
 
meu deus: a vida não desenhada do meu desejo de alturas (vôos altos na terra, ambições altivas).
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poemas malditos, gozosos e devotos. autora: Hilda Hilst. editora: Globo.)
 
 
I
 
Pés burilados
Luz-alabastro
Mandou seu filho
Ser trespassado
 
Nos pés de carne
Nas mãos de carne
No peito vivo. De carne.
 
Pés burilados
Fino formão
Dedo alongado agarrando homens
Galáxias. Corpo de homem?
Não sei. Cuidado.
 
Vive do grito
De seus animais feridos
Vive do sangue
De poetas, de crianças
 
E do martírio de homens
Mulheres santas.
 
Temo que se aperceba
De umas misérias de mim
Ou de veladas grandezas.
 
Soberbas
De alguns neurônios que tenho
Tão ricos, tão carmesins.
Tem esfaimada fome
Do teu todo que lateja.
 
Se tenho a pedir, não peço.
Contente, eu mais lhe agradeço
Quanto maior a distância.
E só porisso uma dança, vezenquando
Se faz nos meus ossos velhos.
 
Cantando e dançando, digo:
Meu Deus, por tamanho esquecimento
Desta que sou, fiapo, da terra um cisco
Beijo-te pés e artelhos.
 
Pés burilados
Luz-alabastro
Mandou seu filho
Ser trespassado
 
Nos pés de carne
Nas mãos de carne
No peito vivo. De carne.
 
Cuidado.
 
 
IV
 
Doem-te as veias?
Pulsaram porque fizeste
Do barro os homens.
E agora dói-te a Razão?
Se me visses fazer
Panelas, cuias
 
E depois de prontas
Me visses
Aquecê-las a um ponto
A um grande fogo
Até fazê-las desaparecer
 
Dirias que sou demente
Louca?
Assim fizeste aos homens.
 
Me deste vida e morte.
Não te dói o peito?
Eu preferia
A grande noite negra
A esta luz irracional da Vida.
 
 
VII
 
É rígido e mata
Com seu corpo-estaca.
Ama mas crucifica.
 
O texto é sangue
E hidromel.
É sedoso e tem garra
E lambe teu esforço
 
Mastiga teu gozo
Se tens sede, é fel.
 
Tem tríplices caninos.
Te trespassa o rosto
E chora menino
Enquanto agonizas.
 
É pai filho e passarinho.
 
Ama. Pode ser fino
Como um inglês.
É genuíno. Piedoso.
 
Quase sempre assassino.
É Deus.
 
 
XII
 
Estou sozinha se penso que tu existes.
Não tenho dados de ti, nem tenho tua vizinhanhça.
E igualmente sozinha se tu não existes.
De que me adiantam
Poemas ou narrativas buscando
 
Aquilo, que se não é, não existe
Ou se existe, então se esconde
Em sumidouros e cimos, nomenclaturas
 
Naquelas não evidências
Da matemática pura? É preciso conhecer
Com precisão para amar? Não te conheço.
 
Só sei que me desmereço se não sangro.
Só sei que fico afastada
De uns fios de conhecimento, se não tento.
 
Estou sozinha, meu Deus, se te penso.
 
 
XIII
 
Vou pelos atalhos te sentindo à frente.
Volto porque penso que voltaste.
Alguns me dizem que passaste
Rente a alguém que gritava:
 
Tateia-me, Senhor,
Estás tão perto
E só percebo ocos
Moitas estufadas de serpentes.
 
Alguém me diz que esse alguém
Que gritava, a mim se parecia.
Mas era mais menina, percebes?
De certo modo mais velha
 
Como alguém voltando de guerrilhas
Mulher das matas, filha das Ideias.
 
Não eras tu, vadia. Porque o Senhor
Lhe disse: Poeira: estou dentro de ti.
Sou tudo isso, oco moita
E a serpente de versos da tua boca.
 
 
XIV
 
Se te ganhasse, meu Deus, minh’alma se esvaziaria?
Se a mim me aconteceu com os homens, por que não
                                                                                       [com Deus?
De início as lavas do desejo, e rouxinóis no peito.
E aos poucos lassidão, um desgosto de beijos, um
                                                                                             [esfriar-se
 
Um pedir que fosse, fartada de carícias.
Se te ganhasse, que coisas ainda desejaria minh’alma
Se ficasses? Que luz seria em mim mais luminosa?
Que negrume mais negro?
 
Não haveria mais nem sedução, nem ânsias.
E partirias. Em vazia de ti porque tão cheia.
Tu, em abastanças do sentir humano, de novo
                                                                                 [dormirias.
 
 
XV
 
Desenho um touro na seda.
Olhos de um ocre espelhado
O pelo negro, faustoso
Seduzo meu Deus montado
Sobre este touro.
 
Desenhas Deus? Desenho o Nada
Sobre este grande costado.
Um rio de cobre deságua
Sobre essas patas.
Uma mulher tem nas mãos
Uma bacia de águas
 
Buscando matar a sede
Daquele divino Nada.
 
O touro e a mulher sou eu.
Tu és, meu Deus,
A Vida não desenhada
Da minha sede de céus.
 
 
XVII
 
Penso que tu mesmo cresces
Quando te penso. E digo sem cerimônias
Que vives porque te penso.
Se acaso não te pensasse
Que fogo avivaria não havendo lenha?
E se não houvesse boca
Por que o trigo cresceria?
 
Penso que o coração
Tem alimento na Ideia.
Teu alimento é uma serva
Que bem te serve à mão cheia.
Se tu dormes ela escreve
Acordes que te nomeiam.
Abre teus olhos, meu Deus,
Come de mim a tua fome.
 
Abre a tua boca. E grita este nome meu.
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