(retratos de carlos drummond de andrade & clarice lispector em sede terceira)
__________________________________________________________________________
depois de um tanto viver, alcançando a idade terceira, mergulha-se na terceira sede, mergulha-se na maneira terceira de matar a sede de vida.
nesta sede terceira, algumas constatações:
ser inteiro custa caro. tão caro que me endividei por não me dividir. sem maiores concessões.
vasculhando o porão da memória, parto em viagem, em expedição, para provar que já morri — algumas boas vezes —. e escavo boletins, cartas & álbuns — o retrocesso da minha letra ao garrancho, letra-moleque, na idade primeira —.
ser inteiro custa caro. uma série de dores, uma série de dissabores…
parto em expedição e, nela, vou achando o que não ansiava achar, esbarrando em objetos despossuídos de lógica, objetos que me encontram antes de qualquer pretensão minha de encontrá-los.
e concluo: tão simples a vida, tão banais as realizações, tão efêmera a estada, o tempo de vivências, que, o que fiz, cabe numa caixa de sapatos.
são muitas as memórias, apesar de efêmera a estada, e desorganizadas, sem cronologia, sem intenções de.
a verdade ordenada é uma mentira. o passado tem sentido se permanecer desorganizado.
(fujo da claridade, pois ela não é muito clara, não é objetiva, não consegue ser, e, assim, refulge a poeira.)
um autorretrato, pela falta de claridade, não seria tão fidedigno. a par desse fato, assisto à revoada de insetos das ciladas.
tantas são as relíquias envaidecidas pelo musgo do tempo, tantas as invenções da memória (quantas peças prega a memória?)…
quantas foram as miudezas (em mim) que não combinavam com o conjunto e, na falta de harmonia, abandonei num depósito em mim?
se me faltou confiança para restaurar as miudezas (em mim) — que não combinavam com o conjunto — ao convívio com diversas outras coisas à mostra em mim, faltou coragem para excluí-las em definitivo.
(as miudezas que não combinavam com o conjunto permaneceram aqui, guardadas num depósito em mim.)
não aprendemos a desaprender. se tais miudezas perduram, somos também o que estocamos. tal desperdício nos molda, tal desperdício nos forma.
não doamos nada (não aprendemos a desaprender), nem a palavra passamos adiante.
(arte poética: há várias escolas, em nenhuma se ensina, já declarou o poeta ricardo silvestrin.)
o porão, onde ficam miudezas que não combinam com o conjunto, o porão tem vida própria, e respira, e vive do que jogamos lá, do que descartamos.
tudo pode fermentar: as mais variadas & díspares lembranças, em desordem completa.
tudo pode nascer sem o mérito do grito, sem o mérito do alarde, do alarido, tudo pode nascer baixinho, quase imperceptível, no murmúrio, ou no estalar do abraço.
tudo pode nascer, ainda que quieto, ainda que entocado.
tudo pode nascer, ainda que abafado.
permitam-se à vida!
beijo todos!
paulo sabino.
__________________________________________________________________________
SEGUNDA ELEGIA
Ser inteiro custa caro.
Endividei-me por não me dividir.
Atrás da aparência há uma reserva de indigência,
a volúpia dos restos.
Parto em expedição para provar que já morri.
E escavo boletins, cartas e álbuns
— o retrocesso da minha letra ao garrancho.
O passado tem sentido se permanecer desorganizado.
A verdade ordenada é uma mentira.
O musgo envaidece as relíquias. Os dedos retiram as teias,
assisto à revoada de insetos das ciladas.
Fujo da claridade, refulge a poeira.
O par de joelhos na imobilidade de um rochedo.
Reviso o testamento alisando a textura,
como um gramático da seda.
Desvendo o que presta pelo som do corte.
O que ansiava achar não acho
e esbarro em objetos despossuídos de lógica
que me encontram antes de qualquer pretensão.
O que fiz cabe numa caixa de sapatos.
Colecionava talhos de madeira, bonecos
adornados com a ponta miúda do canivete.
Lá estava um dos sobreviventes, desfocado,
vizinho das medalhas escolares
e dos parafusos condoídos de ferrugem.
Um autorretrato não seria tão fidedigno.
Eu era aquela frincha de chão florido, casca e húmus.
Quantas foram as miudezas que não combinavam
com o conjunto e, na falta de harmonia,
abandonei no depósito da infância?
E se faltou confiança para restaurá-las ao convívio,
faltou coragem para excluí-las em definitivo.
Somos o desperdício do que estocamos.
Não aprendemos a desaprender.
Não doamos nada, nem a palavra passamos adiante.
O porão tem vida própria e respira
o que jogamos fora.
O que refugamos na ceia volta a nos mastigar.
Tudo pode fermentar: o forro, os passos, o odor do braço.
Tudo pode nascer sem o mérito do grito,
no murmúrio ou estalar do abraço.
Tudo pode nascer, ainda que abafado.
Deixe um comentário