como quem traz nas mãos uma estilhaçada louça de família, louça que, por ser de família, agrega valores sentimentais, trago estas crianças perdidas, dispostas em verso.
(a pátria delas é só memória, a pátria delas é lamento escrito às pressas, num muro derrubado.)
são dura substância, essas crianças, porém o riso ainda lateja em seus olhos mudos.
o riso: lagarto absurdo, pastoreando os sonhos infantis.
para ver o riso consentido dessas perdidas crianças, bastaria a paz da mesa posta ao fim da tarde e o pátio que lhes foi roubado.
para ver o riso consentido — lagarto absurdo, pastoreando sonhos — dessas perdidas crianças, bastaria um lar-pátria que não fosse só memória, um lar-pátria materializado, real.
a paz da mesa posta ao fim da tarde & o pátio, roubados das crianças perdidas:
uma menina no semáforo.
a menina, no amarelo, expõe sua dura & pobre pele pagã preta pequenina, quase escondida na caixa de papelão.
no vermelho, a menina espalha seus olhos brancos baços & brandos, velhos olhos de batalha, no branco dos olhos alheios.
no verde, carros buzinam, insistentes, e a menina, no seu vestidinho de algodão, brinca sem pressa.
os carros & suas buzinas apressadas, buzinas impacientes, buzinas intransigentes: são como dinossauros distantes, são como tanques de guerra, para os que passam resguardados pelos vidros escuros. os carros, vistos como máquinas mortíferas, são uma ilusão que os vidros escuros resguardam dos que passam, e não uma ilusão da menina que brinca & que pede no semáforo.
à menina, os carros que buzinam, insistentes, parecem apenas carros, os carros que buzinam, insistentes, impacientes, intransigentes, parecem o que são: veículos de transporte.
até porque os carros, mesmo sendo, na ilusão dos seus motoristas, tanques de guerra, os carros são roubados todos os dias. pessoas também.
os beijos, infelizmente, é que não são mais roubados como antigamente.
sonhos sufocam em ônibus lotados, morrem nos estômagos vazios, migram aos bandos, feito pássaros.
deixam rastros (os sonhos-pássaros) e não há quem os siga.
de qualquer modo, eu insisto no vício da esperança:
sigamos os rastros dos nossos sonhos, tenhamos uma existência salutar!
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Olhos de cadela. autora: Ana Mariano. editora: L&PM.)
SEMÁFORO
A menina, no amarelo,
expõe a pele pagã.
Pele dura, pele pobre,
pobre pele pura e preta,
pequena,
quase escondida
na caixa de papelão.
No vermelho, ela espalha,
devagar, seus olhos brancos
no branco dos olhos meus.
Olhos baços, olhos brandos,
velhos olhos de batalha.
No verde, a menina brinca
sem pressa, vestidinho de algodão.
Carros buzinam, insistentes.
São dinossauros distantes,
tanques de guerra, ilusão
que vidros escuros resguardam
dos que passam, dela não.
CONVERSA DE AVÓ
Não se roubam beijos como antigamente.
Pessoas, sim. Carros, todo o dia.
Sonhos sufocam em ônibus lotados,
morrem aos bandos, feito pássaros.
Deixam rastros (não há quem siga).
LIVRO DO ÊXODO
Como quem traz nas mãos uma estilhaçada louça de família,
trago essas crianças perdidas,
entre andores e imagens.
Seus vizinhos,
pessoas comuns, morando ali na esquina,
as arrancaram de casas invisíveis
onde havia uma cidade, um povoado.
Sua pátria é só memória,
lamento escrito às pressas
num muro derrubado.
São dura substância, essas crianças.
O riso lateja ainda em seus olhos mudos.
Posso senti-lo, lagarto absurdo, pastoreando sonhos.
Bastaria, para vê-lo consentido,
a paz da mesa posta ao fim da tarde
e o pátio que lhes foi roubado.
Crianças arrancadas continuam.
Insistem no vício da esperança.
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