À ESCRITA

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página vazia, página em branco: página oca.
 
página oca: olho que, por cego, destoa da expectativa que há no olho do poeta, expectativa de tornar cativa, isto é, de tornar prisoneira, tornar refém, da página, a asa liquefeita, a asa diluída no tempo, diluída no seu movimento, mas que ficou guardada na sua memória.
 
assim, a mão-anêmona (do poeta), com seus tentáculos que servem à captura & à navegação, abre o seu leque na “arena de fogo branco”, isto é, abre o seu leque na arena da página branca.
 
os dedos do poeta, por não serem afiados, por serem cegos, não furam. a sua fala é sem agulhas, portanto, fala não pontiaguda.
 
os dedos cegos (do poeta) não furam, a fala sem agulhas não perfura nem costura a tenda da pele da flor acertada, flor aceita, aceita & acertada porque flor “de fato”, porque flor da natureza, flor que, diferentemente da flor da palavra, não se nomeia; flor que, simplesmente, “é”.
 
como o poema não abriga, como o poema não retém, “de fato”, aquilo que nomeia, no fundo, o poema é desterro, é ausência, o poema é superfície lisa (na arena do fogo branco) sem interferência de coisa alguma, vida boa que se despendeu.
 
contudo, todavia, ao mesmo tempo, tudo o que o poeta não recolhe na página oca, tudo o que o poeta não retém na arena de fogo branco, escoa pelo ralo do olho, desmorona memória adentro.
 
portanto, por mais que o poema não retenha, ele retém. por mais que o poema não recolha, ele recolhe.
 
é isso que move tamanha dedicação do poeta às suas linhas.
 
para a poesia: o dia inteiro perseguindo uma idéia:
 
vagalumes, lumes vagos, pequenos pontos de luz que ora se acendem & ora se apagam, contra a teia das especulações, contra a trama das prognoses, contra a urdidura dos devaneios, e nenhuma floração, nenhuma flor desabrochou, nem ao menos um botão incipiente, nem ao menos um botão iniciante, no recorte da janela — janela interna que se abre ao pensar livre, preso ao abstrato —. nenhum botão incipiente, botão principiante de flor, no recorte da janela, empresta foco, empresta atenção concentrada, ao hipotético jardim, jardim que se deseja ver jardim de versos.
 
longe daqui, do mundo, longe inclusive de mim, desço no poço de silêncio varando a madrugada em gerúndio, tentando metáforas, tateando efeitos, escolhendo maneiras, desesperando idéias, varando a madrugada em gerúndio, gerúndio ora branco, gerúndio pálido, como lábios de espanto, gerúndio ora negro, cego de medo, de medo atado à garganta, medo que não permite brotar a flor-poema.
 
longe daqui, longe de mim, desço no poço de silêncio, preso apenas por um fio ínfimo ao infinito, fio mínimo, onde esbarra o superlativo, onde esbarra “o mais que posso”, onde esbarra “o máximo a que consigo chegar”, ainda que mínimo “o mais que posso”, ainda que ínfimo ao infinito “o máximo a que consigo chegar”, visto que isto é tudo de que disponho.
 
alcançar o meu superlativo a fim de alcançar a superlativa poesia: eis do que disponho.
 
assim, dispenso o “sonho”, a “fantasia”, de um chão provável, isto é, de um chão que se possa provar; desse jeito, dispenso o “sonho”, a “fantasia”, de um provável chão, chão de base ideal, e cravo os meus pés no rosto da última flor-poema, última flor-poema porque concluída flor-poema, dispenso o sonho de um chão provável e finco os meus pés no rosto da flor que acaba por nascer.
 
a flor: a poesia.
 
poesia: árvore de fogo, chama negra (pois que a chama da poesia arde, queima, porém a sua luz — nem sempre — esclarece, a sua luz — nem sempre — clareia), labareda sob a qual me agacho em reverência, os pés descalços sobre o chão dos verbos & versos, chão tão árido (são dias inteiros perseguindo idéias, sem, muitas vezes, alcançá-las) quanto íntimo (não há intimidade maior que a do poeta com o seu poema).
 
poema: a luz que aparece depois de abandonar cúmulos-nimbos, que são nuvens negras carregadas de chuva, acumuladas de mau tempo. 
 
pensar poesia é trabalho árduo, faz com que, durante o processo, nuvens pesadas, prontas a desabar, apareçam, para, depois de aprontadas as linhas poéticas, sumirem, ou pelo menos acalmarem-se, e a luz aparecer.
 
poesia: o ninho do temporal.
 
poesia: a flor do segredo quase extinto.
 
a flor do segredo quase extinto: a poesia revela um bocado de quem a escreva. revela um bocado, não tudo. por isso a poesia: flor do segredo quase extinto. quase.
 
poesia: terras ou rebanhos desdenho, possa deitar-me entre as suas raízes, desdenho rebanhos ou terras, possa deitar-me entre os elementos que formam a base das palavras, possa deitar-me entre aquilo que inicia a poesia e que lhe serve de base.
 
para, deste modo, feliz & imaculado, seguir o caminho do que a alimenta, do que alimenta a poesia.
 
(poesia: minha ambrosia…)
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Corola. autora: Claudia Roquette-Pinto. editora: Ateliê Editorial.)
 
 
 
PÁGINA oca
olho que destoa
da expectativa
de tornar cativa
a asa liquefeita,
a mão-anêmona
abrindo o leque na arena de fogo branco.
Fala sem agulhas,
dedos cegos não furam
a tenda da pele onde estala
a flor aceita,
acertada,
que não se nomeia e,
lenta, calcifica.
Desterro ausência
superfície sem interferência,
vida boa despendida.
Pelo ralo do olho
tudo o que não recolho escoa,
desmorona.
 
 
 
O DIA inteiro perseguindo uma idéia:
vagalumes tontos contra a teia
das especulações, e nenhuma
floração, nem ao menos
um botão incipiente
no recorte da janela
empresta foco ao hipotético jardim.
Longe daqui, de mim
(mais para dentro)
desço no poço de silêncio
que em gerúndio vara madrugadas
ora branco (como lábios de espanto)
ora negro (como cego, como
medo atado à garganta)
segura apenas por um fio, frágil e físsil,
ínfimo ao infinito,
mínimo onde o superlativo esbarra
e é tudo de que disponho
até dispensar o sonho de um chão provável
até que meus pés se cravem
no rosto desta última flor.
 
 
 
ÁRVORE de fogo, chama negra,
labareda sob a qual me agacho
em reverência,
pés descalços sobre um chão tão árido
quanto íntimo
(depois de abandonar cummulus nimbus,
a luz aparente, ninho
do temporal).
Flor do segredo quase extinto
sua dança irrefletida
destrói, estala nas ramas,
resvala, em cabelos, num céu.
Terras ou rebanhos desdenho,
possa deitar-me entre as tuas raízes,
feliz e
imaculada seguir
o caminho do que te alimenta.
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4 Respostas

  1. Lindo, linda, belo, bela:
    Lindo texto, linda mensagem!!
    Belo poema, bela escrita!!
    PARABÉNS!!

    • Obrigadíssimo!

      Beijo!

  2. Gostei muito, muito dos poemas!!
    Admiro muito talentos como o seu, e gosto muito de ler bem, ler o que é bom engradece e modifica nossas vidas!!
    Obrigado por compartilhar seu talento conosco!!
    PARABÉNS!!

    • Fico muitíssimo feliz com as suas palavras, muitíssimo obrigado!

      Beijo!

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