O LEITOR

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o leitor se depara com uma antiga anotação sua à margem de um livro:
 
é como ouvir a própria voz no gravador, como ver a própria imagem na televisão — uma estranha familiaridade.
 
uma estranha familiaridade: pois a antiga anotação está paralisada, suspensa, gravada, no tempo. diferentemente do leitor, ser em eterna mutação, ser que nunca é aquilo que foi.
 
a antiga anotação revela, somente, o antigo leitor, o leitor que foi, não o leitor que “é”.
 
o antigo leitor é como um espectro, uma imagem separada, descolada, do leitor que “é”; assim como a imagem na televisão não é, apenas representa, a pessoa que reflete aquela imagem; assim como o som da voz no gravador não é, apenas representa, o som que reverbera aquela voz contida em alguém.
 
uma antiga anotação à margem dum livro lido: estranha familiaridade.
 
as anotações à margem de um livro revelam a intimidade do leitor — nunca a do livro.
 
o livro não precisa ser revelado. a obra é o que as linhas contêm e não o que se entende das linhas. o que se entende das linhas revela o olhar do leitor sobre as linhas, as anotações revelam, portanto, a intimidade do leitor.
 
o leitor que “é”, na presença das anotações que representam o leitor que “foi”, isto é, o leitor que “é”, na presença das anotações que representam o “outro” — o leitor anotado.
 
o leitor que “é” (sujeito anotador) a observar o leitor que “foi” (sujeito anotado), a observar o “outro”, a observar o “quanta besteira…”, a observar o “que ridículo!”, a observar o sujeito anotado, sujeito de que não gosta, ou sujeito que, simplesmente, o leitor que “é” não reconhece.  
 
o sujeito anotador pode não reconhecer o sujeito anotado.
 
o sujeito anotador pode renegar o sujeito anotado por não mais se reconhecer ali.
 
a olhos alheios, olhos que não os do sujeito anotador, a olhos de terceiros, o texto sublinhado ou as palavras-chave à margem de um parágrafo escondem a voz do sujeito anotador, protegendo a sua intimidade; pois, a olhos alheios, não fica esclarecido o que querem dizer as palavras-chave nas passagens grifadas.
 
mas basta a voz do leitor em contato com a voz do sujeito anotado para, no livro, o corpo inteiro do leitor, desnudado, pelado; às vistas, tudo o que são as anotações à margem do parágrafo, às vistas, tudo o que, em suma, representa o corpo do sujeito anotado.
 
o sujeito anotador enxerga, com o seu olho de raio-x, o que está por trás das palavras-chave, dissecando, desse modo, o corpo inteiro, pelado, do sujeito anotado.
 
ainda que olhos alheios, ainda que olhos de terceiros, não entendam o que, ao certo, querem dizer as anotações, emprestar um livro a um amigo é sempre “uma questão”…
 
(as anotações revelam a intimidade do leitor.)
 
quando o leitor, habituado a sublinhar o texto, é impedido de fazê-lo — porque se trata de um livro de amigo ou de biblioteca —, percebe alguma coisa lhe escapando — e não são as idéias, que, num caso de livro emprestado, são anotadas em fichas, mas o próprio livro. porque o leitor, habituado a sublinhar e a escrever palavras-chave à margem do parágrafo, rabisca, desse modo, o livro, para ter a ilusão de olhá-lo na estante e, ao mirá-lo, pensar bem satisfeito: “já o li”.
 
a ilusão de pensar que já o leu: pois um instante bastaria, caso o leitor abrisse o livro a fim de ler os seus rabiscos, para na página se espelhar um rosto totalmente deformado, diferente do seu rosto atual.
 
(o sujeito anotador versus o sujeito anotado.)
 
o fato é que: o sonho de ver o livro na estante, rabiscado, repleto de anotações, como “lido”, se verdade fosse, no fundo, seria um grande pesadelo. significaria que o leitor, vendo o seu rosto refletido no rosto do sujeito anotado por todo o sempre, não opera transformações, significaria que o leitor não opera mudanças.
 
(a natureza do sujeito anotado diverge da natureza do sujeito anotador.)
 
(enquanto um — o sujeito anotado — se cristaliza, o outro — sujeito anotador — se transmuta.)
 
pensa o leitor numa existência sem mudanças, pensa o leitor numa existência sem transformações: a casa cheia de espelhos planos (espelhos planos espalhados por entre as páginas dos livros), refletindo o seu sempre mesmo rosto.
 
assim, o leitor enxerga o pesadelo que é o sonho, e, súbito, deseja vestir-se de mulher no carnaval (nem que seja no carnaval, travestindo-se de mulher, mas alguma transformação deve ser feita, algum transformismo realizado…).
 
o leitor é um a cada único instante.
 
o leitor nunca é aquilo que, um dia, foi.
 
o “leitor de si”, idem.
 
o leitor de si: o escritor.
 
o escritor é o primeiro leitor dos seus escritos.
 
o leitor de si (o escritor) vive num pêndulo, de um lado ao outro: vai do entusiasmo (com os escritos) à depressão, do prêmio (que a obra merece) ao fracasso (que a obra merece), do livro (a publicação que os escritos merecem) ao nada (o engavetamento dos escritos, para que ninguém os conheça), em intervalos de inexplicáveis dias.
 
o leitor de si, por ser o seu primeiro leitor, é um crítico, o leitor de si julga, aos seus olhos, a sua obra.
 
todo bom escritor, conseqüentemente, é um bom leitor, o que significa dizer: um bom crítico (assim como todo bom cantor é um bom ouvinte, e todo pintor de talento, um apreciador das belas telas).
 
em decorrência do seu aguçado senso crítico em busca de um claro juízo, o leitor de si se lê seguidamente. de tanto ler-se, acaba por não mais conseguir juízo algum sobre a sua obra. são tantos os prós & tantos os contras, e instáveis, que, depois de dezenas de revisões, o leitor de si acaba perdido — a certa altura o texto perde todo o significado.
 
inseguro, o leitor de si pede uma opinião sincera aos amigos de ofício, amigos a quem o leitor de si rende as mais altas loas em razão dos seus últimos escritos.
 
contudo, a insatisfação, a inquietação & a ansiedade do leitor de si, estados que o levam ao estado de pêndulo (uma hora, bem, outra hora, mal), acabam por transformar todo & qualquer leitor (dos seus escritos) em suspeito:
 
se o amigo-leitor aprova os escritos é porque, cumplicidade, são amigos; se o amigo-leitor critica os escritos é porque, rivalidade, são amigos; se o amigo-leitor se mostra ambígüo, se se mostra vago, indefinido, é porque — eufemismo — são amigos.
 
não há resposta que satisfaça o leitor de si.
 
na relação entre o leitor de si & os seus escritos não existe rival maior que: 
 
a folha branca.
 
 
 
 
para o leitor de si não existe pior inimigo que a folha vazia, imóvel, impassível, dentro da sua austeridade branca, encarando-o, sem a mínima compaixão por ele.
 
é uma luta que se trava com o papel em branco; mais que o apito ou o tiro anunciando o embate, o gongo, instrumento percussivo que marca o início ou o término de uma luta no ringue.
 
e a luta começa. diante do papel oco, horas de concentração máxima, em busca das palavras exatas.
 
nessa luta em caçar palavras, o ouvido permanece colado à folha branca, e, desse modo, é possível ouvir o tropel longínqüo da História: a história dos versos ao longo dos tempos, a história dos versos ao longo da história humana, aglutinada, aglomerada, pulsando no íntimo da folha branca, a história da poesia condensada no dentro do papel vazio, pulsando tudo o que foi feito (em termos poéticos, ao longo das sociedades humanas) e o que ainda está por vir — nas mãos do poeta, em luta no ringue.
 
na folha branca, lutam a medusa (ser mitológico que, através do seu olho cego, cega quem a olhe) & as sereias (seres mitológicos que enfeitiçam aqueles que ouvem os seus belos cantos). na folha branca, lutam a força que paralisa & petrifica ao seu olhar cego e o canto que sopram as sereias, para dentro da página.
 
nesta luta, qual seria o “papel” do poeta?
 
o papel do poeta: entrar com o seus olhos & ouvidos a fim de captar aquilo que, no ringue-papel, pulsa, aquilo que, na arena de luta, lateja: o poema.
 
o poema, ventado pelas musas.
 
as musas: para apreendê-las, um pequeno manual do ócio, pequeno manual com três movimentos de uma hecatombe, de um acontecimento grandioso no seu barulho surdo, duma catástrofe, doméstica:
 
saturar as horas;
 
deixar crescer as unhas;
 
escutar com os pés.
 
movimentos que exigem atenção redobrada, concentração aguda, altíssimo silêncio.
 
(poemas são presentes para atentos. há que saber ouvi-los para que pousem à página.)
 
dão um boi (as musas) para não aparecer, e uma boiada para não ir embora.
 
(as musas demoram a aportar; não são fáceis, são exigentes ao extremo. porém, quando consentem a sua visita, ficam no encalço do poeta o tempo necessário para que este as lance ao mundo exatamente como são: como musas.)  
 
na presença delas não se consegue ler. são exigentes ao extremo (as musas). o centro da atenção ordenam que sejam elas.
 
embora as musas murmurem sempre algo que, indistinto (o embrião do poema), o que murmuram parece ser mais interessante que qualquer livro.
 
têm a distância por norma (elas não são de muita intimidade, elas são chão árido, chão árduo), mas, quando presentes, fazem, do impossível, possível: vazios, números, aspas, tudo ganha conteúdo, tudo ganha forma, ganha projeção:
 
tudo é poesia.
 
(aproveitem a presença das musas em suas vidas! 
 
comemorem comigo a existência deste espaço, que, neste dia 06 de agosto, completa os seus 2 anos de existência!)
 
beijo todos!
paulo sabino. 
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(do livro: Da amizade. autor: Francisco Bosco. editora: 7Letras.)
 
 
 
O OUTRO
 
 
1. O leitor se depara com uma antiga anotação sua à margem de um livro:
 
2. é como ouvir a própria voz no gravador
 
3. ou, pior, ver a própria imagem na televisão
 
4. — uma estranha familiaridade.
 
5. As anotações revelam a intimidade do leitor
 
6. nunca a do livro.
 
7. O sujeito anotado, aos olhos do sujeito anotador: o outro, o “quanta besteira…”, o “que ridículo!”.
 
8. (Ou simplesmente — o irreconhecível.)
 
9. Sublinhar o texto — ou escrever palavras-chave à margem de um parágrafo — protege a intimidade do leitor, escondendo sua voz
 
10. (não se sabe ao certo o quê naquela passagem) 
 
11. mas basta a voz do leitor para, no livro
 
12. — foto, flash, flagra —
 
13. seu corpo inteiro, pelado.
 
14. …um amigo pede um livro emprestado…
 
 
 
TRANSFORMISTA
 
 
Pior do que romance xerocado
— existe alguma coisa mais sem charme? —
 
é o livro que se toma por empréstimo
a um amigo, ou à biblioteca,

depois do implacável “esgotado”.
Habituado a sublinhar o texto,

o leitor, impedido de fazê-lo,
quer seja por pudor, ou obscura

certeza de que nada adiantaria,
percebe alguma coisa lhe escapando

— e não são as idéias, anotadas
em fichas, mas o próprio livro, que

(diante dessa falta ele conclui)
por isso no limite se rabisca:

para se ter a ilusão de olhar
o livro na estante e, ao mirá-lo,

pensar bem satisfeito — “já o li” —
mantendo-o, entretanto, bem fechado,

pois um instante apenas bastaria
para na página se espelhar

um rosto totalmente deformado,
e o sonho da estante viraria

o pesadelo da biblioteca,
não fosse o fato de que o próprio sonho

seria um pesadelo, se verdade:
a casa cheia de espelhos planos

(pensa o leitor, e súbito deseja
vestir-se de mulher no carnaval).

 
 
 
O LEITOR DE SI
 
 
1. O leitor de si vive em um pêndulo:
 
2. vai do entusiasmo à depressão, do prêmio ao fracasso, do livro ao nada
 
3. — em intervalos de inexplicáveis dias.
 
4. O leitor de si é seu primeiro leitor;
 
5. por isso todo escritor é crítico — embora não seja, necessariamente, um crítico — e por trás de um bom escritor há sempre um bom leitor.
 
6. A primeira leitura, no ato da escrita, se dá em boas condições críticas, pois não se conhece bem o que se está a escrever;
 
7. depois tudo se complica: o leitor de si é aquele que lerá dezenas de vezes o que já conhece, e por essa razão é tão difícil de ler.
 
8. O leitor de si se lê seguidamente, em busca de um juízo claro
 
9. — ao contrário: como acontece com as palavras repetidas, a certa altura o texto perde todo significado.
 
10. Inseguro, o leitor de si pede uma opinião sincera aos amigos
 
11. (não sem antes, é claro, exaltar-lhes os últimos escritos):
 
12. se aprovam, é porque — cumplicidade — são amigos;
 
13. se criticam, é porque — rivalidade — são amigos;
 
14. se ambígüos, é porque — eufemismo — são amigos;
 
15. se demoram, é porque — paranóia — não gostaram.
 
16. Todos os leitores são suspeitos.
 
 
 
A FOLHA BRANCA
 
 
1. Mais uma vez um poema, e a promessa de apagar as fronteiras
 
2. — entre mim e o quê?
 
3. Para Cisneros as primeiras palavras lançadas devem ser exatas.
 
4. A tática: não deixar crescer o moral do adversário.
 
5. Por que a folha, não a tela?

6. Para manter a escrita aberta por mais uma etapa;

7. porque da folha à tela ganha-se alguma distância de si.

8. Mais que apito ou tiro: gongo.

9. (Há os que só lutam quando são chamados;

10. há os que só quando bem preparados;

11. há os que sem luva — à mão livre, nua.)

12. Quando se cola o ouvido à folha branca, escuta-se um tropel longínqüo: o rumor da História.

13. Na folha branca lutam a Medusa e as Sereias

14. — entro com meus olhos e ouvidos.

 
 
 
AS MUSAS
 
 
1. Pequeno manual do ócio
 
2. (ou, três movimentos de uma hecatombe doméstica):
 
3. saturar as horas
 
4. deixar crescer as unhas

5. escutar com os pés.

6. “Poemas são presentes para os atentos”.

7. Dão um boi para não aparecer, e uma boiada para não ir embora.

8. Não se consegue ler na presença delas;

9. pois estão sempre murmurando algo que, embora indistinto, parece ser mais interessante que qualquer livro.

10. Têm a distância por norma

11.

12.

13.

14. mas quando estão perto: números, aspas, vazios — tudo torna-se forma.

2 Respostas

  1. A imaginação não é a capacidade de inventar imagens, mas a de harmonizá-las com o nada inicial do poema.

    Todo o discurso sem zonas de escuridão é convencional e precisa de inspiração. Mas escuridão, neste caso, não quer dizer falta de lucidez.

    A poesia está feita do que se diz, mas também do que se cala. Por isso, quem diz tudo não é poeta. Quem tudo cala, também não, mas acaba por ser menos maçador.

    A última gota, a que a esponja não expulsa quando a esprememos, é a poesia. Mas essa mesma gota não é nada sem a pressão da mão.

    (Angel Crespo – A Realidade Interna – Poemas escolhidos (1949-1990). Selecção e Tradução de José Bento – teorema)

    • Que lindo trecho, Amélia, que lucidez!

      Poema é a linguagem que também revela quando cala. Os seus silêncios & pausas podem dizer o cerne, mais do que palavras. Isso é de uma sabedoria… Adorei!

      Beijão, querida, e, por favor, venha SEMPRE me fazer as suas visitas!

      (Bom tê-la nesta comemoração aqui!)

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