DELÍRIO: SALTOS À ALEGRIA

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não precipitemos as coisas: essa vertigem que parece insuflar fôlego, que parece insuflar palpitação ao inanimado, palpitação ao sem vida, ainda é muda, essa vertigem ainda não diz nada além da própria vertigem, vertigem incipiente, inicial, ainda inominável.
 
saibamos perceber esse estado.
 
não devotemos às coisas que nos afete, às coisas que nos atinja, neste perímetro, no perímetro da vertigem que parece insuflar fôlego ao inanimado, o discurso-poema que se deseja vindo do cosmos, que é a morada das musas, não estimemos apelos de inspiração artística aos astros no que ainda é simples vibração inaudita no íntimo espanto que se instaura dentro dos nossos corações.
 
sintamos apenas — não denominemos o amor.
 
afinal, o que se sente ainda é vertigem que parece insuflar fôlego ao inanimado, o que se sente ainda é simples vibração inaudita.
 
tenhamos calma. tempo ao tempo. não precipitemos as coisas.
 
sintamos apenas (não denominemos o amor) na língua, na saliva, no beijo, no momento em que as coisas são; sintamos as agulhas do instante translúcido a nos perfurar os sentidos; sintamos apenas o conteúdo evanescente, o conteúdo de curta duração, conteúdo-instante que passa como tudo na vida (como um rio passa a caminho do mar); aproveitemos as coisas no seu devido tempo — aproveitemos um abraço enquanto abraçamos, aproveitemos o beijo enquanto beijamos, aproveitemos o amor enquanto amamos.
 
sintamos apenas, após estourada a fina esfera de toda metáfora, após o silêncio da linguagem.
 
(no momento da simples vibração inaudita, não nos afete o discurso esperado do cosmos…)
 
aproveitar cada coisa, cada instante, enquanto cada coisa, cada instante, é.
 
assim, vamos consumindo melhor o tempo que disponibilizamos aos nossos afazeres, às nossas tarefas diárias, enquanto “levitamos” nas profundezas de um tempo, maior, que nos consome — a cada dia, um dia a menos.
 
nós & as coisas (medusas marinhas, campânulas fluorescentes, e muitas outras formas naturais) consumimos o tempo que é nosso, tempo consumido com os nossos afazeres, enquanto somos consumidos por um “tempo maior”, enquanto somos consumidos no sorvedouro dos passos — a cada dia a mais, um dia a menos.
 
eis a minha crença, a minha crucial verdade.
 
eis a nossa crença, a nossa crucial verdade.
 
eis a hipótese-delírio: medusas marinhas engolfadas, engolidas, por um mesmo & único pélago (abismo marinho); campânulas (flores silvestres) fluorescentes consumindo o tempo de seus afazeres enquanto levitam nas profundezas de um outro tempo que as consome.
 
eis a hipótese-delírio, que assim o é por abrigar imagens delirantes, imagens delirantes colhidas nas margens da maré.
 
eis a teimosa hipótese, hipótese que se repete, insistente, hipótese que a maré nos despeja quando estamos ao seu pé, hipótese que a maré nos despeja quando estamos juntos do mar, hipótese que, por mais insólita, hipótese que, por maior o delírio, um possível hálito do que, desde todo o sempre, a eternidade; hipótese que, por mais delirante, um possível odor que exala da boca da existência desde o seu primórdio — todos nós, engolidos pelo mesmo pélago escuro & definitivo, todos nós, consumindo o tempo nosso enquanto um tempo maior nos consome.
 
portanto, saibamos aproveitar o tempo das nossas funções diárias; portanto, saibamos mergulhar, saibamos saltar, na existência.
 
enquanto há vida, enquanto a existência persiste em nós, há saltos, há mergulhos.
 
a cada dia, um novo dia, e um outro mergulho, e um outro salto.
 
um velho, por exemplo, mergulha várias vezes antes que seu corpo abrace, por completo, a vertiginosa dose do vazio desse evento — o salto último, mergulho na eterna obscuridão.
 
as várias crianças de um velho, todos os seus jovens, lançam-se, saltam, pulam, mergulham, em sua busca, em busca do velho, que está seco, retornado à borda da vida, recebendo todos esses corpos que se atiram e que se sentam, sucessivamente, onde está sentado.
 
a cada dia, um novo mergulho, a cada dia, um novo salto na existência.
 
e, para cada novo mergulho, e, para cada novo salto, uma (BOA) dose de alegria.
 
alegria: esse estado indomável, indomável como as imagens, ariscas, arredias: peixes em fuga.
 
alegria: esse modo de acariciar o tempo, o modo de afagar o tempo sem afogá-lo num mar de lamentações.
 
alegria: inalar a essência, inalar o perfume que o tempo exala, perfume inodoro (perfume sem cheiro, perfume impossível de ser captado & decifrado), sem perder o fôlego.
 
(há que se perceber na vida, e isso é um trabalho de cada um, a essência, o perfume, o cheiro bom, que o tempo exala.)
 
 alegria: inalar, do tempo, a sua essência, isto é, inalar, do tempo, o seu centro, o seu cerne, inalar aquilo que, ao tempo, é fundamental, sem perder o fôlego, sem perder o ânimo, sem perder o gás.
 
agruras nos acometem. lutemos para resolvê-las a fim de empregarmos melhor o nosso tempo neste tempo maior que nos consome.
 
lembrem-se sempre: tudo passa; tudo, sempre, passará.
 
lembrem-se sempre: bom não é viver, mas viver bem. 
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Trecho. autor: Marcelo Diniz. editora: Aeroplano.)
 
 
AGULHAS
 
Não precipitemos as
coisas: essa vertigem
que parece insuflar
fôlego, palpitação
ao inanimado, ainda 
é muda, saibamos
perceber esse estado.
Não devotemos ainda
às pedras ou a qualquer
outro ente que nesse
perímetro nos afete
o discurso esperado
do cosmos, não estimemos
apelos dos astros no que
ainda é simples vibração
inaudita e presente
nesse íntimo espanto.
Sintamos apenas — não
denominemos o amor —
na língua as agulhas
do instante translúcido,
o conteúdo evanescente
após estourada a fina
esfera de toda metáfora.
 
 
DELÍRIO
 
Essa insistente hipótese
mal se sugere: súbito,
o clarão, tão logo a revela,
dissipa-a como um
íntimo equívoco. Delírio,
nesse silêncio, um batimento
de medusas engolfadas
por um mesmo pélago,
campânulas fluorescentes
consumindo o tempo
de seus afazeres enquanto
levitam nas profundezas
de um outro tempo
que as consome. Essa
teimosa hipótese se repete,
precipita, nesse relance,
nossa crença, nossa crucial
verdade, e o que se colhe
nessas margens, essas bolsas
que a maré despeja, talvez
um possível hálito, insólito
que seja, do que, desde
sempre, a eternidade.
 
 
SALTO
 
Um velho mergulha
várias vezes, várias
crianças, todos os seus
jovens lançam-se
antes que seu corpo
abrace, por completo,
a vertiginosa dose
de vazio desse evento.
Um velho está sempre
um instante a mais no
ar, terço de segundo
sem peso, suspenso,
enquanto vê os tantos
corpos descerem a queda
disciplinada e reta da lei
da gravidade irreversível.
Um velho já está no solo,
retornado à borda, já lá,
seco, certo de ter feito
todos os mergulhos,
e recebe todos esses
corpos que se sentam,
sucessivamente, onde
está sentado, há tempos,
após saltarem em sua busca.
 
 
ALEGRIA
 
Alegria, indomável
como as imagens,
ariscas, peixes em
fuga, esse modo de
acariciar o tempo e
deixá-lo, afagá-lo sem
afogá-lo, inalar-lhe a
impossível essência
sem perder o fôlego. 

6 Respostas

  1. a dose certa de cada fôlego! deus! como se consegue criar uma imagem tão esclarecedora quanto:

    Um velho mergulha
    várias vezes, várias
    crianças, todos os seus
    jovens lançam-se
    antes que seu corpo
    abrace, por completo,
    a vertiginosa dose
    de vazio desse evento.

    ?

    os poemas que você colocou aqui se costuram entre si. há a existência, o amar, o envelhecer, o renascer.

    que bonito, paulinho! a poesia de marcelo diniz é essencial!

    sabe, querido, eu o admiro, sinceramente, e a cada nova publicação aqui no teu espaço, onde o poeta e o poema são a razão de existir tanto espaço, conheço um pouco mais de você e das possibilidades humanas quando geram-se transcendentes. chego a pensar, quando leio os teus apontamentos, que há em ti o tal velho que mergulha, mas não no vazio e sim em si, em nós, e faz da escrita tabulário de questões para nos libertar das paredes pesadas da existência.

    aqui é um mergulho constante e um renascer prazeroso.

    um beijo, doçurita.

    • Betina, minha doçura ao ponto do mais doce & delicado,

      Que LINDAS as suas palavras, como elas me fizeram feliz!

      Isso é um estímulo, GIGANTE, para que este espaço siga o seu rumo, apostando no que vem apostando desde sempre: na BOA literatura.

      Que MARAVILHA contar com a sua amizade nesta DELICIOSA empreitada poética!

      Beijo, amore mio! 🙂

      • Muito muito bonito… Bonito de ensandecer ♥

      • Querida,

        Que bom o seu comentário!

        Beijoca!

  2. Paulinho,

    Cada vinda aqui é um novo mergulho, um novo aprendizado: imerso em delírio, em diálogos, em versos… Depois, saio mais próximo do que sou, do que amo. Respiro: é isso!

    Grato!

    Adriano Nunes

    • Meu poeta das Alagoas,

      Ter você aqui é sempre um GRANDE PRAZER!

      Veja: você é a publicação logo acima desta! 🙂

      Que MARAVILHA!

      Gratidão IMENSA!

      Beijo GIGANTE! 🙂

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