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sei de uma criatura antiga, muito antiga, que devora os próprios membros & entranhas com a sofreguidão da fome insaciável.
a criatura habita, ao mesmo tempo, os vales & as montanhas. no mar, espreguiça-se em convulsões.
a criatura traz, na fronte, o obscuro despotismo. é ela que sempre dá a palavra final, por isso parece estar entre o amor & o egoísmo.
a criatura contempla, friamente, o desespero & o gozo; gosta do colibri assim como gosta do verme, e põe ao redor do seu coração o belo & o monstruoso.
duas realidades divergentes — o belo & o monstruoso — coexistem no coração da criatura.
para ela, o chacal é tão inerme, tão inofensivo, quanto um passarinho, e passeia na terra, imperturbável criatura, como caminha um paquiderme num vasto areal.
a criatura está em toda obra: cria & destrói.
a criatura, depois de fazer rebentar o primeiro gomo numa árvore, e fazer vir a folha, que lenta se dosdobra, para então a flor e, por último, o suspirado pomo, a criatura, depois de todo esse trabalho de realizações, a criatura cresta, queima, o seio da flor e corrompe-lhe o fruto.
(é nesse “destruir” que as suas forças se renovam & dobram.)
a criatura ama de igual amor o poluto & o impoluto, ama de igual amor o belo & o monstruoso, e seu despotismo habita um lugar entre o amor & o egoísmo, entre a bondade & a brutalidade.
a criatura começa & recomeça numa lida perpétua.
a criatura déspota: a vida.
começar & recomeçar: eis o ciclo infindo da vida; inicia & finda, finda & inicia, como a lua, que, do crescente ao miguante, varia.
começar & findar, findar & recomeçar: eis os ciclos da vida & da lua.
lua nova: na teogonia indígena, “jaci”, mãe dos frutos, deusa que presidia a vida vegetal, a quem os indígenas faziam grandes festas, com comida & bebida, cantos & danças.
jaci, mãe dos frutos: lua nova, lua cujo rosto é encoberto por um amplo véu, deixando à mostra somente um filete do seu brilho.
lua nova, lua que apresenta, e representa, um novo ciclo, lua que representa o renascimento, que representa o novo início:
jaci, vós que sois mãe dos frutos,
abençoai os meus. que os frutos que vos sirvo possam saciar a fome de quem desejar comê-los.
que, na dura peleja, o olho adverso, o olho divergente, o olho indesejado, não veja este braço cair frouxo, que os frutos-poemas alcancem, sempre, a minha mão.
na dura peleja, seja mais longa a vida, seja mais duradoura a jornada, e que, durante o percurso, exista o benefício de ver vencidos os arcos contrários.
jaci, mãe dos frutos, peço a vós o vosso germe, germe que faz brotar, enfolhar, verdejar, germe que se abre em flor.
que vingue o vosso germe fecundo em mim, mãe dos frutos, em mim & em minha musa.
minha musa:
é ela que inspira meus cantos.
é doce & risonha, se o amor lhe sorri.
é grave & saudosa, se a saudade lhe carpir.
a musa me inspira os meus cantos de prece, cantos de prece endereçados à “criatura”; a musa desperta a crença de que, um dia, tudo tudo tudo vai dar pé, de que, um dia, o brasil (terra gigante, meu berço infantil, um nome de afetos na idéia) faça jus aos tantos brasileiros que lutam por um lugar melhor para todos.
a musa que inspira meus cantos é LIVRE.
a musa que inspira meus cantos DETESTA os preceitos da opressão.
a musa que inspira meus cantos ABOMINA rótulos & conchavos.
a musa que inspira meus cantos não está comprometida com “panelinhas”, nem com “grupinhos”, nem com estilo & escola literários.
a minha musa é deveras severa; ela está comprometida, unica & exclusivamente, com a poesia.
o aroma da esperança, o aroma de tempos melhores, que recende, que exala, na minha alma, é a musa que aspira, no cálix (no cálice) da flor.
é a musa que me acende o estro (o entusiasmo artístico, o gênio criador) na fronte.
é a musa que inspira meus versos de amor.
(de amor à vida & às suas ambientações.)
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: A poesia completa. autor: Machado de Assis. organização: Rutzkaya Queiroz dos Reis. editoras: Edusp / Nankin Editorial.)
UMA CRIATURA
Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo,
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.
Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as suas forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte: eu direi que é a Vida.
LUA NOVA
Mãe dos frutos, Jaci, no alto espaço
Ei-la assoma serena e indecisa:
Sopro é dela esta lânguida brisa
Que sussurra na terra e no mar.
Não se mira nas águas do rio,
Nem as ervas do campo branqueia;
Vaga e incerta ela vem, como a ideia
Que inda apenas começa a espontar.
E iam todos; guerreiros, donzelas,
Velhos, moços, as redes deixavam;
Rudes gritos na aldeia soavam,
Vivos olhos fugiram pr’a o céu:
Iam vê-la, Jaci, mãe dos frutos,
Que, entre um grupo de brancas estrelas,
Mal cintila: nem pode vencê-las,
Que inda o rosto lhe cobre amplo véu.
E um guerreiro: “Jaci, doce amada,
Retempera-me as forças; não veja
Olho adverso, na dura peleja,
Este braço já frouxo cair.
Vibre a seta, que ao longe derruba
Tajaçu, que roncando caminha;
Nem lhe escape serpente daninha,
Nem lhe fuja pesado tapir.”
E uma virgem: “Jaci, doce amada,
Dobra os galhos, carrega esses ramos
Do arvoredo co’os frutos que damos
Aos valentes guerreiros, que eu vou
A buscá-los na mata sombria,
Por trazê-los ao moço prudente,
Que venceu tanta guerra valente,
E estes olhos consigo levou.”
E um ancião, que a saudara já muitos,
Muitos dias: “Jaci, doce amada,
Dá que seja mais longa a jornada,
Dá que eu possa saudar-te o nascer,
Quando o filho do filho, que hei visto
Triunfar de inimigo execrando,
Possa as pontas de um arco dobrando
Contra os arcos contrários vencer.”
E eles riam os fortes guerreiros,
E as donzelas e esposas cantavam,
E eram risos que d’alma brotavam,
E eram cantos de paz e de amor.
Rude peito criado nas brenhas,
— Rude embora, — terreno é propício;
Que onde o germe lançou benefício
Brota, enfolha, verdeja, abre em flor.
MINHA MUSA
A Musa, que inspira meus tímidos cantos,
É doce e risonha, se amor lhe sorri;
É grave e saudosa, se brotam-lhe os prantos,
Saudades carpindo, que sinto por ti.
A Musa, que inspira-me os versos nascidos
De mágoas que sinto no peito a pungir,
Sufoca-me os tristes e longos gemidos,
Que as dores que oculto me fazem trair.
A Musa, que inspira-me os cantos de prece,
Que nascem-me d’alma, que envio ao Senhor,
Desperta-me a crença, que às vezes dormece
Ao último arranco de esp’ranças de amor.
A Musa, que o ramo das glórias enlaça,
Da terra gigante — meu berço infantil,
De afetos um nome na ideia me traça,
Que o eco no peito repete: — Brasil!
A Musa, que inspira meus cantos é livre,
Detesta os preceitos da vil opressão,
O ardor, a coragem do herói lá do Tibre,
Na lira engrandece, dizendo: — Catão!
O aroma da esp’rança, que n’alma recende,
É ela que me aspira, no cálix da flor;
É ela que o estro na fronte me acende,
A Musa que inspira meus versos de amor!
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Paulinho,
Sempre muito bom vir aqui!!!!
Abração,
Adriano Nunes
Meu poeta das Alagoas,
Sempre bom tê-lo aqui! 🙂
BeijÃO!