O mais novo livro de poesias de Affonso Romano de Sant’Anna – e o primeiro depois de Vestígios, pelo qual ganhou o Jabuti, em 2005 – já no título renova o tema, presente em toda sua obra, da construção da morte dentro da vida. Recorrendo ao mito grego de Sísifo, aquele que conseguiu driblar o seu destino e aprisionar a morte, ousadia pela qual foi condenado ao exaustivo e inútil trabalho de rolar uma grande pedra de mármore ao topo de uma montanha, o poeta explicita o desejo de refletir sobre a passagem do tempo e a finitude. A epígrafe de Clarice Lispector expondo a urgência da “deseroização de si mesmo” fala do trabalho estético e existencial deste poeta.
No percorrer das páginas, Affonso Romano de Sant’Anna aponta os seus múltiplos exercícios de relação e diálogo com o tema e com todas as questões que o cercam: as resoluções acerca da cremação já concebida, as dificuldades em lidar com a morte última, com aquela que nos arrasta a todos para todo sempre, as mudanças no olhar do poeta, no seu modo de enxergar as coisas, e uma certa melancolia.
Porém, o olhar do poeta, que trespassa a morte, é um olhar que trespassa a vida. O poeta está vivo. Portanto, ainda que a presença da morte como tema seja evidente, o olhar do poeta volta-se e se interessa, sobretudo, pela vida que pulsa em tudo que o rodeia.
A poética de Affonso Romano de Sant’Anna continua afiada e os seus versos evidenciam o mesmo seu olhar atento, olhar arguto, às várias nuances da experiência humana, do seu “estar no mundo”: o olhar crítico e contundente ao tratar das injustiças sócio-econômicas; o olhar conciliador ao chamar o presidente dos EUA, Barack Obama, a um passeio em Cartago para narrar a destruição da cidade e contar que teme que o Afeganistão seja a Cartago dos tempos atuais; o olhar amoroso ao falar do nobre sentimento que cultiva pelos amigos, pela família e por sua mulher, a quem observa pela casa, a regar as plantas, no ritual doméstico de cada dia a fluir na sua passagem; o olhar categórico ao mostrar a sua visão de Deus, onipresente, porém diferente do Deus onipresente criado pelas religiões cristãs; o olhar aventureiro ao narrar o seu fascínio por viagens, pela história das sociedades humanas e os seus grandes acontecimentos; o olhar admirado na observação que faz dos animais, um outro fascínio do poeta, que desde que se pôs a observá-los está à beira do abismo e não para de se extasiar: com gato, com cavalo, com o sapo Alfredo, com a cachorrinha meiga e com os seres que habitam as profundezas marinhas; o olhar apaixonado ao revelar a tirania da musa, afirmando que não há escolha, escreve-se mesmo sem vontade, escreve-se porque não há alternativas: “Escravidão. / Escrevidão”. E pergunta-se: “Poesia: / — alforria? // Ou consentida / servidão?”
Sísifo desce a montanha é um livro cujo tema central é a morte – os medos, as angústias, os enigmas, as inquietações que rondam o assunto. O poema “Véspera” clarifica que não existe quem esteja preparado para a hora última, para a hora derradeira, que ninguém está à espera da morte, que ninguém está realmente pronto para o ponto final. No entanto, como pode (erroneamente) parecer, este não é um livro sobre a morte. Este é um livro sobre a vida, sobre o grande aprendizado que é viver, confirmando a máxima de que, até o último sopro de respiração, o ser humano é um eterno aprendiz. A finitude é uma das grandes questões da humanidade, senão a maior. Sísifo desce a montanhaé um livro sobre a nossa breve existência neste mundo cheio de nuances, gradações e variantes.
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(do livro: Sísifo desce a montanha. autor: Affonso Romano de Sant’Anna. editora: Rocco.)
COMO SE DESCE UMA MONTANHA
Não é mais fácil
nem menos perigoso
do que subir
— é diverso.
Se olhados de fora
— os gestos —
podem parecer mais lentos.
Para quem desce
ao contrário, a sensação
não é de vertigem
— é complemento.
Subir foi demorado
descer
é outra arte.
É como se Sísifo
do outro lado do monte
estivesse.
Descer com uma pedra
nos ombros
— pode ser leve.
PREPARANDO A CREMAÇÃO
1
Levanto-me. Vou ao cartório
autorizar minha cremação. Autorizar
que transformem
minhas vísceras, sonhos e sangue
em ficção.
O que pode haver
de mais radical?
Assinar este papel
tão simples
tão fatal.
Autorizar a solução final
de todos os poemas.
2
Faz um belo dia. Do terraço
vejo o mar:
pescadores cercam um cardume
banhistas seguem
se expondo à vida, ao sol.
Olho a trepadeira de jasmim
os vasos de begônia e gerânios
margaridas brancas e a azaléia:
— a vida continua viva dentro
e ao redor de mim.
Poetas antes e depois de Homero
tentaram cantar a morte
(Nos consolaram).
Hamlet (cioso)
dialogou com uma caveira
de antemão.
Olho cada parte de meu corpo
que vai se desintegrar:
mexo os dedos, vejo as veias
e no espelho esse olhar
que nada mais verá.
Irei à praia daqui a pouco
mas antes passarei pelo cartório.
3
Há muito venho me preparando
me despedindo do sorriso da mulher, das filhas
da rua onde diariamente passo
me despedindo dos livros
vizinhos e paisagens.
Não sou só eu. Minha mulher
antes de mim no mesmo cartório foi
e ainda mostrou-me o documento.
Olho-a neste terraço: lá está ela, viva!
ligada nas plantas e planos. Olho-a:
acabou de fazer um vestido novo.
Como imaginá-la no jamais?
Ao lado, o barulho de um túnel que estão cavando:
— é a nova estação do metrô.
Há um alarido de crianças na escola vizinha
e eu saio
numa esplêndida manhã de sol
para cuidar de minhas cinzas.
Tenho muito que dialogar com a morte
e a vida ainda.
RITUAL DOMÉSTICO
Toda noite
acendo algumas velas na sala
enquanto minha mulher prepara o jantar.
Somos nós dois
e essa cachorrinha meiga
com seu estoque inesgotável de afeto.
Comemos, conversamos
(as velas em torno)
elogio a comida surpreendente
que ela sempre faz.
Falamos do mundo. De nós mesmos.
Volta e meia, ela diz: “Vou te dizer uma coisa
que só posso dizer para você”
e faz uma revelação, como se abrisse um poema.
Calmamente o jantar chega ao fim.
Vou tirando as louças
e começo a apagar as velas uma a uma
enquanto soam os últimos acordes barrocos.
Menos um dia, uma noite
— a mais.
Junto à porta, a cachorrinha
ora deita-se estirada
ora late para o nada.
PAREM DE JOGAR CADÁVERES NA MINHA PORTA
Parem de jogar cadáveres na minha porta.
Tenho que sair
— respirar.
Estou seguindo para os jardins de Allambra
a ouvir o que diz a água daquelas fontes
e acompanhar o desenho imperturbável dos zeligues.
Não me venham com jornais sangrentos sob os braços.
Parem de roubar meu gado, de invadir meu teto
e de semear pregos por onde passo.
Estou em Essaouira, na costa do Marrocos
olhando o mar. Ou em Minas
contemplando as montanhas de Diamantina.
Não me tragam o odorento lixo da estupidez urbana.
Parem de atirar em minha sombra
e abocanhar meu texto.
Estou tornando a Delfos
naquela manhã de neblinas
ouvindo o que me diz o oráculo em surdina.
Ainda agora embarquei para o Palácio Topkapi,
frente ao Bósforo,
quando tentaram me esfaquear na esquina.
Jamais permitirei que quebrem as porcelanas
e roubem a gigantesca esmeralda na real vitrina.
Não me chamem para a reunião de condomínio.
Estou nos campos da Toscana
onde a gigante mão de Deus penteia os montes
e minha alma se sente pequenina.
Dei de mão comendas e insígnias
não tenho mais que na praça erguer protestos
e distribuir esmolas não é mais a minha sina.
Acabo de entrar no Pavilhão da Harmonia Preservada
e me liberto
— na Cidade Proibida na China.
Não adianta o clamor de burocráticos compromissos
nem vossa ira. Tenho oito anos
saí para nadar naquele açude atrás dos morros
e vou pescar a minha única e inesquecível traíra.
Parem de jogar cadáveres na minha porta
na minha mesa
na minha cama
dificultando
que alcance o corpo da mulher que amo.
Afastem de mim
o meu
o vosso cálice.
Impossível ficar no tempo que me coube
o tempo todo
preciso repousar num campo de tulipas
reaprendendo a ver o que era o mundo
antes de
como um Sísifo moderno
desesperado
julgar
— que o tinha que carregar.
POÉTICA DA RESPIRAÇÃO
Poderia ficar aqui
como um carpinteiro
(eu sei fazer isto)
aplainando ferozmente
as palavras
(eu posso fazer isto).
Mas ao contrário
me interessa mais
o frágil sopro
do monge que
imóvel
liga-se ao universo
e é só respiração.
A FALA DE DEUS
Houve um tempo em que Deus falava hebraico.
Passou depois a falar latim
após um rápido estágio pelo grego.
Atualmente há quem afirme
que optou pelo inglês
embora em algumas tribos
xamãs se comuniquem com os seus
em incompreensíveis dialetos.
Isto apenas prova
que Deus é poliglota.
Se não
porque inventaria a Torre de Babel?
Só não entendo porque alguns se apresentam
como seus tradutores e intérpretes
quando ele claramente fala
pela voz dos pássaros e das flores
ou quando pela boca das bactérias
destrói (silencioso)
— nossa empáfia verbal.
HIERÓGLIFOS
Teus olhos contemplam hieróglifos no meu corpo
que tua língua decifra prazerosa.
Cleópatra não és,
Íbis não és.
No entanto, abro-te minha alma
como um papiro
e das margens desse leito
transbordo como o Nilo.
OUTRA POÉTICA
Com os egípcios aprendo
lição milenar:
para o obelisco saltar da pedra
— ou o poema
surgir da página
na forma lisa e perfeita —
não basta a força
de instrumentos de metal
(a razão).
É a madeira umedecida
com óleo ou água
(a emoção)
que servida em pontos certos
fará saltar
da página/pedra bruta
o obelisco
— ou poema exemplar.
OBAMA, VENHA COMIGO A CARTAGO
Posso lhe convidar
para “a cup of coffee“
ou se preferir, uma cerveja
nos jardins da Casa Branca
como você fez com aquele professor negro e aquele policial
que equivocadamente se atritaram.
Mas o melhor lugar pra nosso encontro
— é Cartago.
Como dizia Garcia Lorca:
Alli no pasa nada
dos romanos matam siempre
três cartagineses.
Certamente há lugares mais auspiciosos para se ir
e dialogar. A Cartago
Massada
ou Numância
se vai para resistir
— morrer.
Na escola (quem sabe até na Palestina e Bagdá?)
nos ensinam 120 anos de “guerras púnicas”
até que na Terceira
DELENDA CARTAGO
Roma setenciou.
E após três anos de cerco
(como em Stalingrado
quando devorados os cães
já se devoravam os ratos)
fez-se o fiat ao revés:
por seis dias e seis noites hordas de legionários
atravessando arrasados vinhedos e olivais
se revezaram no sucessivo ataque.
Só Scipião Emiliano, o mais voraz
não descansava.
Alcançadas as primeiras casas de Byrsa
lançaram tábuas sobre os terraços
e avançavam
enquanto embaixo os estrídulos das espadas e os alaridos
das mulheres desventradas
— lembravam My Lai.
A fuga era impossível. Até as figuras imóveis dos mosaicos
se horrorizavam. Como uma lagarta incendiada
a história ardia
como no Vietnam
ardia a pele sob napalm.
Foi quando o legionário texano
— indiferente —
disse ao repórter de tevê:
— “I’m doing my job“.
E vieram os 10 senadores de Roma
conferir a destruição.
A pilhagem
foi liberada aos soldados,
mas o ouro, a prata, a oferenda aos deuses
e o petróleo
foram prometidos a outros nobres.
Nem Tanit, nem Ba’al
poderiam socorrer Aníbal
e seus 300 elefantes
como não puderam valer
a Asdrúbal — seu jovem irmão
e aos que não mais queriam a guerra.
Entre Cartago e Roma
(entre Dido e Enéias)
nunca foi fácil a ambígua relação:
O amor sempre rondou a morte
A morte sempre rondou o amor.
Entendo, enfim, porque os romanos ergueram em toda parte
tantas casas de banho
— era muito samgue a lavar.
Venha, Obama, passearemos aqui pelas ruínas
das Termas de Antonio Pius.
Não há água, não há chuva que lave
tanto remorso petrificado.
Agora, enquanto lhe escrevo, estou em Roma
a dez metros do portentoso Panteão
e olho o crepúsculo tingindo de ouro e sangue
as cúpulas e telhados.
Alguns pombos pousam sobre o templo de Agripa e Adriano
como se saídos da arca de Noé
ou daquele pôster de Picasso.
E eu, Romano, que ontem, em Cartago,
fiz o jejum de Ramadan
e cercado de oleandros e jasmins
contemplei a história dos altos jardins de Sidi Bou Said,
venho a Roma
acertar contas com Catão
e toda prole de Scipião o Africano.
Você não poderia ficar fora deste assunto, Obama
— “you are the man“
E depois do que Catão e Scipião
fizeram no Iraque
temo que a próxima Cartago
é o Afeganistão.
Os símbolos e as ruínas me perseguem.
Olho essa Lua islâmica, aquele alfanje afiando sua lâmina
na crispada torre barroca de Borromini.
Temos que conversar, Obama
— you are the man
E o melhor lugar, posto que o mais terrível
é Cartago:
Alli no pasa nada
dos romanos matam siempre
três cartagineses.
NO FUNDO DO MAR
Desde que me pus a observar os animais
estou na beira do abismo
e não paro de me extasiar.
Outro dia desci a 2 mil metros no oceano
e até agora
— não pude regressar.
Ali
bizarros, violentos
e soturnos seres
estáticos e deslizantes
se procuram, se perseguem
se destróem no escuro.
Chocado, vejo-os na TV.
Vivo em terra firme
embora frequente o mar.
Deveria estar mais tranquilo
porque os civilizados estabelecem limites
e sinais.
Mas meu predador me ilude
e me ataca uma vez mais.
ESCRAVIDÃO POÉTICA
Escravidão.
Escrevidão.
Poesia:
— alforria?
Ou consentida
servidão?
Paulinho!! Que saudades! Muito legal!! Parabéns e beijos!
Nirinha, minha flor, meu amor,
Que GRATÍSSIMA surpresa a sua presença! ADOREI!
Apareça mais vezes, por favor, meu amor!
Beijo ENORME! 🙂
Grande Paulinho,
Que há a dizer a não ser que você é um excelente cirurgião das palavras, um ser capaz de dissecar cuidadosamente versos e extrair deles os sentidos, os segredos, as coisas que nem seriam ditas, não só ditas? Bravo, meu amigo! Sou seu fã!!!
Adriano Nunes
Ô, meu poeta das Alagoas,
Tão bom esse seu retorno!… Porque, você bem sabe, que a recíproca é verdadeira, eu também sou seu fã! 🙂
Que bom nos sabermos juntos nesta estonteante viagem que é navegar em versos!
Beijo ENORME!
Affonso Romano de Sant’Anna é um dos poucos pensadores deste nosso país que não está pensando… Assisti a sua entrevista hoje na Rede Brasil, MARRAVILHA!!!!
Affonso Romano de Sant’Anna é “marravilhoso” mesmo (rs)!
Beijo GRANDE!
após assistir a entrevista de Affonso Romano de Sant’Ana na rede brasil,passei a crer que posso tornar-me um ser humano melhor.O Brasil precisa trilhar o caminho da leitura, do amor ao conhecimento,da valorização de gênios como Affonso Romano de Sant’Ana.acorda Brasil !!!!!!!
Que bom, Raimundo!
Lindas as suas palavras. Maravilha!
Abraço grande!
Sísifo toma a poesia como alforria e desce a montanha ‘romana’ rolando um papo de pedra com Obama para morrer cartaginês.
Achei fantástica A DESCIDA DE SÍSIFUS, pois até então êle só empurrava uma pedra querendo subir
Que bom que gostou!
Aguardo mais visitas, Helga!
Beijo!
Como sempre um passeio por aqui me deixa mais leve…mais informada e mais feliz…bjks sempre encantadas…
Que maravilha, Elsa, coisa boa de saber!
Então, por favor, volte sempre, a casa é NOSSA!
Beijo!
Obrigado pela colher de chá, ars
Poeta!
Quem agradece o fato de ter feito o texto de apresentação ao seu livro sou eu!
Grandes honra & privilégio!
Incrível!
GRANDIOSÍSSIMO Affonso, ainda bem que o descobri cedo em minha vida. Fantástico.
farei vesibular amanhar na UEMg E acredito ter me preparado bem com esta leitura. abraços.
Que maravilha saber, Marcos! Espero que este espaço continue a te trazer boas leituras.
Grande abraço!
Larissa, ARS é realmente incrível, poeta de primeiríssima grandeza!
Marcos Soares, que bacana saber! Sempre que quiser, venha à página! A casa da poesia é a casa de todos!