(paulo sabino, de gracinha para a foto – rs, ainda bem jovenzinho: tempo que não volta mais.)
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o presente — até porque é a única coisa que nos resta — é o que importa, é o que, de fato, temos à disposição.
se eu voltar a lamber as botas do passado,
se eu voltar a visitar o passado com tamanha veemência,
se eu voltar a chorar a memória da memória:
que me seque a mão direita! que me seque a mão com a qual rascunho os meus rabiscos que revivem o passado!
quando o calor do passado vier pelo vento tardio desta primavera tão pura e o meu tato corromper, e o meu tato desvirtuar, estragar; e o roçar da nuca do passado me fizer tremer, tremer por lembrar o roçar daquela nuca do passado; se eu assobiar a mínima canção do passado; se eu procurar a boca do passado e o ruído das ruas do passado estrangular o meu coração:
que a língua cole no paladar!
ó, língua, ó, devastadora filha de babel (da torre, arruinada pelo alarido das línguas desencontradas), feliz é aquele que devolve a você o mal que me é causado por querer resgatar aquilo que não pode ser resgatado, feliz é aquele que rejeita esse mal, feliz é aquele que não aceita essa sua oferta: falar do passado.
feliz é o que se oferece ao que está. ao que: disponível: o presente.
não pedirei mais nada ao passado.
repetirei, em desassombro, repetirei, sem espanto ou surpresa (se eu lembrar de você, passado, cidade-além), repetirei em desassombro para o passado o que, no passado, alguns disseram a jerusalém: “arrasai-a! arrasai-a até os alicerces!”
morte ao morto!, o passado.
longa vida ao que fica!, o presente.
o passado: a estrela fria.
a estrela fria: a infância, a memória, o passado, é a luz de uma estrela fria, fria porque a sua luz não mais aquece, está longe, morta, está no passado.
a estrela fria: as recordações do poeta:
o verão, avassalador, o rangido do sol a pino, em pernambuco, varrendo a sombra & a árvore: quintal pelado; o medo, um companheiro do poeta de todas as horas.
os ermos da infância abrigam os olhos do poeta:
ele sabe que a sua própria história, que escuta de si mesmo, vem tangida, vem tocada, pela memória de um “outro”, de um “outro” que é identificado com o tato, com o toque, de hoje, “outro” que nada mais é do que o poeta do tempo presente, este, sim, em constante transformação, e que, por viver em contínua mudança, será sempre um “outro”.
preocupemo-nos mais com este “outro” que formamos a cada dia.
que este “outro” — que formamos a cada dia — se sinta pleno na vida em que está, que este “outro” se sinta realizado na existência que abriga, a fim de que as lembranças sejam puramente (boas) lembranças (lembranças de um presente outrora bem vivido), e o presente, aquilo que mais vale o seu olhar.
morte ao morto!, o passado.
longa vida ao que fica!, o presente.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: A estrela fria. autor: José Almino. editora: Companhia das Letras.)
CANÇÃO DO EXILADO
Se eu voltar a lamber as botas do passado,
se eu voltar a chorar a memória da memória:
que me seque a mão direita!
Quando o teu calor vier
pelo vento tardio deste verão tão puro
e corromper o meu tato;
e o roçar da tua nuca me fizer tremer,
se eu assobiar a tua mínima canção,
se eu procurar a tua boca
e o ruído das tuas ruas estrangular o meu coração:
que me cole a língua ao paladar!
Ó devastadora filha de Babel,
feliz quem devolver a ti
o mal que me fizeste!
Não pedirei mais
perdão às virtudes do passado.
Repetirei, em desassombro
— se eu me lembrar de ti, Jerusalém —,
com os que diziam:
“Arrasai-a!
Arrasai-a até os alicerces!”
A ESTRELA FRIA
There’s no there there.*
I
O verão era permanente.
Tanto fazia: alegria e dor
tinham
o calor do meio-dia.
II
De primeiro, era o
sol
que em Pernambuco leva dois sóis **
e aterrisa de chofre
sobre a palha da cana
sobre a cabroeira do eito,
imundas,
ao arrepio da carícia
das geladeiras,
ao largo de azulejos
azuis.
Depois
é trinado de cancão
no salão de barbeiro
suor do descamisado
capinado
o descampado.
Não há crepúsculo
mas o rangido do sol a pino
varrendo a sombra
e a árvore:
quintal pelado.
De longe,
a infância queima:
ela é a luz de uma estrela fria.
III
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.***
Quando o medo andava pelas ruas,
era apenas ele, nosso pai e nosso companheiro:****
entrava na padaria, passeava o cachorro,
pousava a mão no meu ombro.
Na minha infância já não se morria de tifo,
mas havia o medo,
sufocando-me durante as noites,
com lágrimas
e o travesseiro.
IV
Vou não.
Pego tudo e sacudo fora:
avoo no mato.
V
O sol de Sócrates amanhece lúcido, vigilante:*****
não é o meu.
Teço apenas o fiozinho de um desejo
que escreve letras tortas por linhas incertas.
Às vezes bobeio, quando os meus olhos abrigam os ermos
[da infância.
Morei no Zumbi, um lugar que sumiu.
Perdi a pátria nos trilhos sonolentos do bonde de Caxangá.
VI
Os adjetivos mastigam metáforas que desafinam:
há muito não vejo um rosto na multidão
e, qual Ulisses, volto a escutar a minha própria história
tangida pela memória de um outro
que com o tato de hoje identifico,
frente a uma tarde
quando aprendi a ver.
Eu era um signo opaco,
menino chutando pedra
no oco do mundo,
liberto de escolhas,
entre o ócio e o espanto.
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*autores das citações no poema “a estrela fria”:
* Gertrude Stein
** João Cabral de Melo Neto
*** Carlos Drummond de Andrade
**** Murilo Mendes
***** Carlos Drummond de Andrade
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