O LEGADO DA TRAVESSIA

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madrugada.
 
viajante que sou, homem dado às nuances do mundo, às observações do entorno,
 
parto sem norte, parto sem traçar direção, deixando que o caminho fale por mim, no pouco mar da aurora que nos cabe, mar pouco porque escassas as águas desta nossa vida, vida tão breve, tão curta.
 
viajante que sou, parto, avante, lerda ave, parto, pássaro vagaroso (vagaroso porque sigo a minha rota de olho no meu entorno), fugindo do tempo que não me deixa dele fugir.
 
lerda ave, pássaro vagaroso, o meu sentido, o meu norte, é somente a viagem: nem partida, nem retorno: só o vôo, breve, vôo de uma existência riscando a tarde. 
 
viajo, lerda ave, viajo, senhor das velas, senhor do sextante (instrumento que permite medir, a bordo de um navio, a altura dos astros e suas distâncias angulares), viajo, senhor das estrelas. e, no percurso, o que me falta é chegar, coisa que não almejo, pois o bom da viagem é justamente a estrada, que vamos construindo passo a passo, no dia-a-dia, dia-a-dia que passa como passa o passarinho, dia-a-dia que passa como passam o sonho & o desespero. 
 
a hora, descarnada, a hora, etérea, não lembra, não tarda, não falha: a hora passa. ela nomeia a todos, convoca os deuses (à lida da vida), e, sem demora, vira a página.
 
hora passada, página virada, assunto encerrado, capítulo escrito & deixado para trás, capítulo que não mais pode ser relido.
 
frente ao tamanho do mar existencial, as águas que temos a percorrer são parcas. é pequeno & breve o destino do seu sonho, e do meu.
 
portanto, se pequeno & breve o destino dos nossos sonhos, trilhemos o caminho na certeza de que fazemos o melhor por nós. 
 
este é o único legado nosso à posteridade: mostrar-lhe o quanto tudo pode ser melhor se, de fato, fazemos o melhor por nós.
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: A chave do mar. autor: Fernando Moreira Salles. editora: Companhia das Letras.)
 
 
 
MADRUGADA
 
 
Viajante
parto
no pouco mar
desta aurora
 
Parto
sem norte
lerda ave
fugindo do tempo
 
 
 
AVE
 
 
Nem partida
nem retorno
o voo breve
riscando a tarde
 
 
 
TRAVESSIA
 
 
Nesta nau
trago imagens
e a brisa
que me sopra
 
Viajo
senhor das velas
do sextante
e das estrelas
      Só me falta
      chegar
 
 
 
DO TEMPO
 
Para José Mindlin
 
 
Hora descarnada
não lembra
não tarda
hora rasa
nomeia a todos
convoca os deuses
e sem demora
vira a página
 
 
 
LEGADO
 
 
Não há dor
partilhável
nem lamento
que se ouça
 
É pequeno
o destino
do teu sonho
e do meu
 
Se alguém
te viu passar
se o caminho
te pertence
    segue
e sorri

4 Respostas

  1. Lindo, Paulinho.
    Beijo saudoso.

    • Ô, Nirinha,

      Que bom tê-la aqui! Que bom saber que gostou!

      Beijo beijo beijo saudosos! 🙂

  2. Paulinho, querido,

    é sempre estimulante ler o teu pedaço de visão de mundo posto nas introduções ao poeta escolhido. penso que a poesia exposta ao teu sabor como leitor, assim como o poeta exposto ao teu grau de sensibilidade, ganham a dimensão da tua dimensão lírica. e tal dimensão não é pouca, sem dúvida.

    tudo se amplia aqui. é belo o que fazes.

    um beijo, com admiração, doçura.

    • Meu doce requintado,

      Que bom contar com a sua presença e o seu carinho!

      Que presente da vida!

      Beijo beijo beijo, doçurita! 🙂

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