CONFORME A MARÉ, A MIRAGEM EM ABISMO & O SOPRO DA DEUSA

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é um privilégio ser o que me cabe e o que pretendo para além de mim.
 
para além de mim pretendo diversas realizações.
 
um pássaro, bicho apto a vôos, naufraga no meu céu, um pássaro afunda, malogra-se, falha, no meu céu, e eu, mesmo assim, mesmo com o vôo fracassado do pássaro, eu continuo projetando um horizonte contra qualquer eclipse, continuo projetando ir além, ir mais adiante, contra qualquer efeito de obscurecimento.
 
já sei que vou, talvez, me estiolando, sei que vou, talvez, enfraquecendo, murchando, perdendo a cor, mas sei também que nascem flores no meu sonho e a carne se acende em gozo (e que assim seja por muito tempo).
 
quem sabe, um dia, eu saiba meus portantos, quem sabe, um dia, eu saiba, eu descubra, as minhas conclusões, quem sabe, um dia, eu saiba, eu descubra, as minhas finalidades, o que almejo de conclusivo & assertivo, e tenha, por sustento, por necessidade, a aventura de expor ao vento, de expor ao que sopra direções, essa ave-vida, vida-pássaro, e suas rotas pré-estabelecidas.
 
quem sabe, um dia.
 
por agora, enquanto não sei meus portantos, enquanto não sei os meus desfechos, enquanto não sei as minhas conclusões, as marés, com o passar dos dias, vão roendo o meu barco ao sabor das minhas navegações, a minha alegria nasce em cada porto em que me proponho ancorar, a lua segue em seu caminho, e eu, sem profecias, e eu, sem previsões, e eu, sem que saiba meus portantos, me adivinho, me decifro, me revelo, a cada passo andado; me adivinho, me decifro, me revelo, de acordo com a trilha, de acordo com a rota, que vai se mostrando no andar dos passos.
 
é um privilégio ser o que me cabe e o que pretendo para além de mim.
 
ainda assim, ainda que seja um privilégio ser o que me cabe, não sei de que tecido, de que trama, é feito o ser.
 
sei apenas que meus planos, meus sonhos, meus enganos, se tecem na fábrica da vida e se destecem, e se desfazem, na arquitetura (na estrutura & organização) do caos cotidiano.
 
na arquitetura do caos, vou arquitetando, vou criando, edifícios em que me demoro & onde moro durante um tempo (os meus abrigos existenciais) e de onde salto em busca de “não sei”, em busca de caminhos novos, de trilhas inéditas, em busca do que se desvele no próprio caminhar, em busca do que se desvele no próprio trilhar.
 
meu ser é parte dessa miragem em abismo, meu ser é parte dessa imagem de atirar-se na vida sem saber exatamente o que encontrar na esquina próxima, meu ser é um espelho em que não me vejo, espelho que não me reflete exatamente, e, não me vendo, acendo a chama que se chama: desejo. desejo pelo desconhecido, desejo pelo imponderável, desejo pelo imprevisível, desejo pelo que há de vir e que desconheço.
 
não sei muito; sei que sempre existe certa, sempre existe alguma, distância entre mim (o que sou, o que suponho ser) e o “circo” (as situações ocorridas no picadeiro que me cabe) da minha “circunstância”, ciente de que o circo da minha “circunstância” — situação, estado ou condição de coisa ou pessoa em determinado momento — é armado por fatores & atores os mais variados. 
 
não sei muito; sei que, nesta viagem intangível que é viver, me deleito no leito da poesia, a deusa que me acolhe com constância.
 
as outras deusas, pessoas amantes, estas me acolhem conforme a circunstância (que não depende só de mim), me acolhem conforme a fome, conforme a vontade, de in/ventar o vento-amor.
 
sopro as velas da poesia, sopro as velas da musa, e ela se revela em sua precariedade & seu esplendor.
 
(afinal, todo poeta avista, em seus textos poéticos, o que eles guardam de precariedade — os seus defeitos, os seus problemas — e de esplendor — as suas belezas, os seus grandes achados.)
 
escrever: rito que repito sem saber se outra mão ampara a minha mão (a mão da musa, a mão da inspiração, a mão de algum ser divino ditando os versos), rito que repito sem saber se sou ou se não sou o conquistador (único) dessas conquistas feitas só de éter, conquistas vaporosas, conquistas aeriformes, pequenas, essas conquistas de alguns (belos) versos.
 
minhas palavras nunca foram minhas, minhas palavras nunca foram suas, minhas palavras nunca foram de ninguém. as minhas palavras existem há muito tempo, as minhas palavras existem desde antes de serem minhas.
 
mesmo assim, mesmo nunca sendo minhas as minhas palavras, elas foram me forjando, elas foram me moldando, foram me criando, até que me tornasse este “não-ser”, até que me transformasse nesta criatura repleta de não-saberes, repleta de dúvidas & incertezas, um tipo de “não-ser” (porque inconstante, porque volátil, porque mutante) feito de arquiteturas sem lugar, sem espaço definido, senão no reino-sonho que fundei para mim.
 
reino-sonho: a morada das musas, a morada que me cabe.
 
as palavras ventadas pela deusa poesia me sopram presságios, me sopram futuros, me sopram acontecimentos por vir, e nelas, nas palavras ventadas pela deusa poesia, plantarei os meus naufrágios.
 
é na fundura dos versos que me afogo.
 
na poesia, ao sopro da deusa, me fundo & afundo.
 
é no céu da poesia que naufraga a minha ave-vida.
 
(graças!)
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poemas reunidos. autor: Geraldo Carneiro. editoras: Nova Fronteira / Fundação Biblioteca Nacional.)     
 
 
 
CONFORME A MARÉ
 
 
é um privilégio ser o que me cabe
e o que pretendo para além de mim.
um pássaro naufraga no meu céu
e eu continuo projetando um horizonte
contra qualquer eclipse.
já sei que vou talvez me estiolando
embora nasçam flores no meu sonho
e a carne ainda se acenda em gozo.
quem sabe um dia saiba meus portantos
e tenha por sustento a aventura
de expor ao vento essa ave-vida.
as marés vão roendo o meu barco
a alegria nasce em cada porto
a lua segue em seu caminho
e eu sem profecias me adivinho
 
 
 
MIRAGEM EM ABISMO
 
 
não sei de que tecido é feito o ser.
meus planos sonhos enganos
se tecem na fábrica da vida
e se destecem na arquitetura do caos.
vou criando edifícios em que me
                                                       demoro
e de onde salto em busca de não sei.
meu ser é parte dessa miragem
                                                       em abismo
um espelho em que me não vejo
e em me não vendo acendo a chama
que se chama desejo.
 
talvez do outro lado exista um cais.
sei que sempre existe certa distância
                                                       entre mim
e o circo da minha circunstância
 
 
 
O SOPRO DA DEUSA
 
 
me deleito no leito da poesia
a deusa que me acolhe com constância.
as outras, conforme a circunstância,
a fome de inventar o vento-amor.
sopro suas velas e ela se revela
em sua precariedade e seu esplendor.
é um rito que repito sem saber
se outra mão ampara a minha mão,
se sou ou se não sou conquistador
dessas conquistas feitas só de éter.
minhas palavras nunca foram minhas,
mas foram me forjando com sua força
até que me tornasse esse não-ser
feito de arquiteturas sem lugar
senão no reino-sonho que fundei.
essas palavras sopram-me presságios
e nelas plantarei os meus naufrágios.
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