PASSAGEM DO ANO

____________________________________________________________
 
o último dia do ano não é o último dia do tempo.
 
afinal, a vida é um dia-a-dia de acontecimentos contínuos & descontínuos.
 
depois do último dia do ano, e do primeiro dia do novo ano, outros dias virão e, com os novos dias, novas coxas & ventres comunicarão o calor da vida.
 
ano novo, dia novo, fato novo: muitas bocas para beijar, muitos papéis para rasgar, viagens para fazer & tantas outras celebrações… o tempo, de tantos ocorridos, ficará repleto e, de tão repleto, não deixa espaço a outras coisas que não digam respeito à nossa própria vida.
 
o último dia do tempo (dia derradeiro, dia do adeus ao mundo) não é o último dia de tudo.
 
o dia morre & nasce todos os dias. o tempo segue sua caminhada ininterrupta. 
 
recebamos com simplicidade este PRESENTE do acaso: o merecimento de viver mais um ano.
 
meu pai morreu, meu avô também.
 
em mim mesmo muita coisa expirou, muita coisa teve o seu fim, outras coisas espreitam a morte, outras coisas, na iminência do esgotamento, mas eu, paulo sabino, estou vivo, e, durante a passagem de um ano a outro, de copo na mão, celebrando a vinda de mais um ano, de mais um dia, esperando amanhecer.
 
e, enfim, independente de quaisquer recursos usados para viver a noite última do ano que passa, surge a manhã de um novo ano, enfim, a manhã de um novo dia.
 
e as coisas, no amanhecer de um novo ano, continuam a ser coisas, limpas, ordenadas, dentro dos seus movimentos diários, cotidianos.
 
depois da vigília etílica & feliz de uma noite, o corpo, gasto, renova-se em espuma: encontro com o mar, útero às vistas.
 
todos os sentidos funcionam “alerta”, tudo ligado na eletricidade do dia & sua luz.
 
a boca está comendo vida.
 
a boca está entupida de vida.
 
a vida, sendo devorada pela boca, escorre, lambuza as mãos, a calçada.
 
a vida é gorda, oleosa, invade ilicitamente, sem permissão prévia, até o que não deseja ser tomado por sua força (a vida é sub-reptícia):
 
a vida é mortal.
 
a vida somos nós.
 
aproveitemos enquanto há tempo.
 
um feliz & próspero 2012!
 
beijo todos!
paulo sabino.
___________________________________________________________
 
(do livro: A rosa do povo. autor: Carlos Drummond de Andrade. editora: Record.)
 
 
 
PASSAGEM DO ANO
 
 
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com
                                                                                             [sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.
 
O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus…
 
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
 
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles… e nenhum resolve.
 
Surge a manhã de um novo ano.
 
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia. 
Publicidade

4 Respostas

  1. Foi um presente de fim de ano ler um pouco mais desse seu blog, querido Paulinho… Bjs e 2012 cheios de vida e poesia para nós!!!

    • Obrigado, Kédman querida!

      Um 2012 cheio de boas surpresas!

      Beijoca!

  2. com sempre tem sido aqui, as tuas palavras fazem aura aos poetas que são publicados no PemP! cada poema que escolhe, em cada poeta que homenageia, sugere uma palavra para a tua filosofia maior: fazer o bem! ser o bem! que felicidade ler aqui a tua alma e a tua sensibilidade. poucas pessoas são puras e boas como você.

    um beijo grande, imenso como o teu coração!

  3. meu doce mais doce que qualquer outro,

    que lindas as suas palavras!

    somos do bem, somos atraídos por nossos pares afins. graças à vida não estou sozinho nesta, conto com a sensibilidade & pureza de um monte de gente do bem, bem assim como eu, como você.

    beijo, minha flor, e um 2012 supimpa!

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

%d blogueiros gostam disto: