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O meu QUERIDO amigo & TALENTOSÍSSIMO poeta-compositor PÉRICLES CAVALCANTI me apresentou este BELÍSSIMO texto, escrito por CAETANO VELOSO, sobre a GRANDE DIVA, a SOBERANA ELIS REGINA.
Este ano a maior cantora do Brasil de todos os tempos completa os seus 30 anos de morte.
Seu desenlace existencial se deu em 19 de janeiro de 1982.
Minha mãe, a minha cabocla Jurema Armond, conta que o Brasil parou para chorar a sua partida. Ela mesma diz que ficou muitíssimo triste, abalada, com a notícia.
Eu, como toda & qualquer pessoa com o mínimo de percepção musical, sei que ELIS REGINA foi a MAIOR.
Todos sabem da minha IMENSA ADMIRAÇÃO & PREDILEÇÃO por outra diva, MARIA BETHÂNIA. Mas se pensarmos, em termos acadêmicos, o que é o canto, o que pode a voz, se pensarmos nos estudos que envolvem o instrumento vocal, Elis foi a cantora que abrigou TUDO em seu timbre, com maestria de GÊNIOS profundamente talentosos: ninguém conseguiu, até hoje, condensar tão PERFEITAMENTE técnica & emoção. Quando a ouço, tenho certeza: ela, Elis, não foi, ela, Elis, É A MAIOR.
As linhas do Caetano são LINDAS, e merecem ser lidas.
Ele fala sobre a sua relação de encontros & desencontros com Elis, salientando, sempre, os seus ENORMES carinho & admiração: “eu via Elis cantar exclusivamente para me sentir bem”, declara.
Ao final do seu texto uma frase-chave, com a qual Caetano acaba por ratificar o tom (acertado, afinado, limpo) do ser de Elis: “ela me escreveu um bilhete pedindo perdão pelo que fez com ‘Gente'”.
Em seu livro “Sobre as letras” (ed. Companhia das Letras), o poeta-compositor explica o episódio envolvendo a (sua) canção “Gente”:
“No show Transversal do tempo, Elis Regina cantava ‘Gente’ como se estivesse debochando da canção, com o arranjo servindo ao deboche, e aparecia ‘Beba Gente’ escrito atrás, como se fosse Coca-cola. (…) Um pouco antes de morrer, ela me escreveu uma carta dizendo que aquilo que ela tinha feito com a minha música em Transversal do tempo tinha sido idéia dos diretores do show, que ela não queria, que, por ela, não faria aquilo, e me pediu desculpas”.
Logo após o texto de Caetano, uma das gravações de Elis que conheci ainda moleque & que me fisgou pelo pé (da cabeça) – rs.
Lembro-me do arrepio ao ouvi-la (a referida gravação) pela primeira vez, lembro-me da minha emoção, da beleza que se revelava.
Os versos contam a história duma mulher que “aparece” ao mundo, que “surge” à vida, depois de uma grande desilusão amorosa. Mulher que cresceu olhando a vida sem malícia, sem maldades, até que um cabo de polícia despertou seu coração. O policial, cabo (sua patente), fê-la apaixonar-se, para, em seguida, soltá-la na rua, abandoná-la, desprezada como um cão. Depois disso, desiludida, machucada, ferida, a mulher caiu na “orgia” (termo, antes, muito utilizado para noitadas de muita farra, de muita cantoria & bebedeira, sem a forte conotação sexual que ganhou nos dias atuais).
Mulher “da virada” (boêmia, mulher que apronta na noite, mal vista, inclusive, por outras mulheres), esquecida por Deus, mulher que irá cada vez mais se esmolambando, cada vez mais arrastando os seus molambos (os seus farrapos) , mulher que seguirá sempre cantando na batucada da vida.
A ela, Elis, pimenta boa de ser degustada, os meus PROFUNDOS carinho & respeito!
SALVE ELIS REGINA, a PRIMEIRA DAMA da canção!
Beijo todos!
Paulo Sabino.
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(do site: Conteúdo Livre. autor do texto: Caetano Veloso.)
QUEM ENTENDE DE MÚSICA SABE QUE ELA (ELIS) É UMA DAS MAIORES QUE JÁ HOUVE
Ouvi Elis pela primeira vez vendo-a na televisão. Foi em Salvador — e nós, os baianos que chegaram ao eixão na esteira da estreia de Bethânia no Opinião, já tínhamos um esboço de visão da música popular numa perspectiva brasileira. Tive reação semelhante à que muitos tiveram: finalmente uma cantora moderna, em pleno domínio de seus recursos aparecia na cena profissional — e já embalada para alcançar massas de ouvintes. Era indubitavelmente um largo passo dado. Éramos todos, Elis e nós, esforços de criação dentro do universo exigente que foi o imediato pós-bossa nova.
Sempre conto que, na minha imaginação, Bethânia, Gal, Gil e eu faríamos algo marcante. Dos quatro, Gal e eu éramos os mais radicalmente joãogilbertianos. E eu talvez mais do que Gal. Bethânia tinha um temperamento e um talento que a levavam para além das marcas estilísticas do supercool de João. Gil, por ser o que mais era capaz de apreender os acordes e as levadas de violão do mestre, sentia-se livre para cruzar a fronteira. Gal desejava entrar cada vez mais fundo no mundo desdramatizado da bossa pura. Eu, que me julgava um observador útil, capaz apenas de contribuir com acompanhamento crítico e conversas teóricas (o que não me impedia de fazer umas musiquinhas), tinha João como paradigma e, por isso, interessava-me pelo desvelamento do ser da canção como forma. Assim, o canto e violão dele se opunham, dentro de mim, ao samba-jazz dos grupos instrumentais (ou voco-instrumentais) que se desenvolveram no Beco das Garrafas. Elis, cantando na TV, num videotape dos que chegavam de avião às províncias (ainda não havia televisão em rede), era a realização brilhante do estilo que me parecia oposto ao de João.
Mas a evidência de competência, talento e desenvoltura era mais forte do que meus esquemas críticos. O fato bruto de que alguém estivesse dominando divisões complicadas das frases rítmicas e exibindo com espontânea segurança o entendimento de cada nota cantada (o modo como ela instintivamente cuidava da afinação) era em si mesmo um acontecimento na cena brasileira, um acontecimento que me obrigava a pôr tudo em novo patamar. Bem, tudo o que eu imaginava para meus três amigos era algo que tivesse esse poder — mas por outras vias, a partir de outros elementos, sempre nascidos da atenção a João. Assim, vi uma tensão natural entre nosso projeto e o acontecimento Elis. Tive quase um sentimento de ciúme. Sobretudo me senti com maiores responsabilidades e excitado por desafios mais altos.
Nada disso nunca se desmentiu. Depois de Elis, teríamos que fazer algo mais radical. Bethânia esteve sempre fora da questão, já que ela tinha um estilo assombrosamente desenvolvido e totalmente independente da estética da bossa nova. Mas ela mal tinha se decidido pela música: havia sonhado em ser atriz, escrevia e fazia joias de metal. Sua voz e sua intensidade pessoal é que a puxaram para o canto, através do interesse despertado em quem a ouvia. O modo extrovertido, o tom expressionista, que contrastava com a sobriedade da bossa nova, tudo isso ela tinha em comum com Elis. Mas eram figuras opostas. Pôr as duas em comparação, dentro da cabeça, era como contrapor Sarah Vaughan a Edith Piaf. Mas o que acontecia era que, com Elis, eu era levado a pensar assim, em termos mundiais, considerando figuras nascentes de nossa canção com divas do grande mundo.
Bem, o ambiente de criação de música popular no Brasil estava se diversificando. Era a época de Edu — e Nara tinha aberto o leque do repertório, saindo das salas sofisticadas e indo ao morro e ao sertão. Mas, fosse Edu, Nara ou nós, todos parecíamos treinados em ambientes de teatro, cineclubes e diretórios acadêmicos. Elis era uma menina que gostava de Ângela Maria e se tornara um fenômeno infantojuvenil em Porto Alegre. A evidência de seu talento chamou a atenção de produtores que sonharam em fazer dela uma nova versão de Celly Campello, o que resultou em quatro LPs que, depois do estouro de “Arrastão”, foram banidos de sua discografia oficial — não tão diferente assim do que aconteceu com o 78 RPM de João, gravado no início dos anos 50. Seja como for, Elis vinha do mundo da música comercial, enquanto Nara , Edu e nós vínhamos dos ambientes intelectualizados.
O Beco das Garrafas e Armando Pittigliani compuseram a Elis genial que, logo formatada por Solano Ribeiro, veio a ser aquela espantosa explosão de “musician ship” que eu vi na TV.
Todos os encontros e desencontros que tive com Elis tiveram esse histórico como pano de fundo. Rogério, seu irmão, me deu de presente os quatro LPs pré-“Arrastão”, numa época em que eu, deslumbrado pelo prazer que dava assistir aos shows dessa cantora que nunca estava fora de sintonia com a música, via mais de uma vez seus espetáculos. Desde que voltei de Londres (coincidindo, em parte, com o período em que ela mostrou sua versão do cool), eu via Elis cantar exclusivamente para me sentir bem. Ela influenciou gerações de cantores, lançou multidões de autores, briguei com a “Veja” por causa do modo como essa revista publicou a notícia da sua morte (briga que nunca mais achei jeito de desfazer), e hoje a gente sabe que Björk a admira, que quem entende de música no mundo sabe que ela é uma das maiores que já houve. Ela me escreveu um bilhete pedindo perdão pelo que fez com “Gente”. E saúdo sua memória com um amor muito pessoal, particular e cheio de conteúdos peculiares.
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(autores: Ary Barroso / Luiz Peixoto.)
NA BATUCADA DA VIDA
No dia em que eu apareci no mundo
Juntou uma porção de vagabundo
Da orgia
De noite teve samba e batucada
Que acabou de madrugada
Em grossa pancadaria
Depois do meu batismo de fumaça
Mamei um litro e meio de cachaça
Bem puxado
E fui adormecer como um despacho
Deitadinha no capacho
Na “Porta dos Enjeitados”
Cresci olhando a vida sem malícia
Quando um cabo de polícia
Despertou meu coração
E como eu fui pra ele muito boa
Me soltou na rua, à-toa
Desprezada como um cão
E hoje que eu sou mesmo da virada
E que eu não tenho nada, nada
Que por Deus fui esquecida
Irei cada vez mais me esmolambando
Seguirei sempre cantando
Na batucada da vida
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(do site: Youtube. canção: Na batucada da vida. autores: Ary Barroso / Luiz Peixoto. intérprete: Elis Regina. áudio extraído do álbum: Elis (1974). gravadora: Universal Music.)
A letra original dessa música me parece que é diferente.A Elis melhorou-a.
Isso eu realmente não sei dizer, Ademar. Porque Elis melhora tudo & qualquer coisa com a sua voz.
Grande abraço!