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a língua é uma serpente.
a língua é uma cobra venenosa (cujo veneno, destilado na construção do discurso, infiltra as idéias),
sem pele & sem dentes (sem pele & sem dentes porque a linguagem, efetivamente, não é uma serpente, e ela, a linguagem, também sem pele porque pode vestir-se, pode travestir-se, de quaisquer tecidos que sejam urdidos com a trama das palavras, e também sem dentes porque, efetivamente, a víbora lingüística não pode dentar coisa alguma, não pode dentar absolutamente nada nem ninguém).
a serpente sem pele & sem dentes morde apenas a si mesma, e morde a si mesma porque o seu conteúdo não tem nada que ver com a natureza, com a concretude da realidade que vivenciamos. a serpente-linguagem trabalha com os símbolos, que são as palavras, criação exclusivamente nossa, exclusivamente humana.
(a serpente-linguagem não é feita de carne nem de osso nem de sais minerais nem da água nem da terra: é feita puramente da invenção — arbitrária — palavra.)
assim sendo, emblemática, sendo assim, simbólica, a língua pode somente morder a si mesma, e morder a si mesma com as gengivas de um velho diabo:
velho diabo porque, segundo o mito da criação divina, o mundo fez-se do verbo.
para nós, seres humanos, a palavra é a grande criadora do mundo.
(lembrar fernando pessoa: uma árvore não se sabe “árvore”; uma árvore simplesmente não se sabe, não se pensa. só sabe o que é “árvore” quem a nomeia como tal.)
é a palavra quem nos diz o que uma coisa é.
sem ela, aos nossos olhos, o mundo seria um caos (algo que, de fato, o mundo é: sem sentido).
no mês passado mudou para endereço ignorado, a víbora. não deu notícias. a víbora abandonou-me as idéias & a ponta da pena com que escrevo. é sempre assim: a linguagem sai sem dar maiores satisfações, sai sem dar notícias, sai sem sabermos, inclusive, se, um dia, regressa.
(não há pior abandono para um escritor…)
a língua não bate bem do firmamento, céu tresloucado onde voam & cantam díspares criaturas. tem (a língua) a cabeça cheia de vocábulos.
a víbora lingüística diz que é o substrato, isto é, a cobra-linguagem diz que é o cerne, o íntimo, o âmago, do pensamento.
e ela, a víbora, está certa: afinal, como fundar idéias, como criar pensamentos, sem a utilização da linguagem?…
no ápice, no auge, do eclipse (momento de sombra, instante sem luz, ocasião de breu, hora de escuridão), a serpente lingüística insiste em nominar o inominado. no auge do eclipse, no ápice do sombreamento, a serpente insiste em dar nome ao que nome não possui.
e tal criatura-criadora só não é deus não porque não quer, mas porque ele, porque deus, não existe. se deus existesse, este seria a linguagem.
a língua é um quase-deus: é ela quem inventa, quem escreve, quem descreve, quem mente. é a língua, com as suas palavras & construções frasais, quem diz “deus”. assim como o criou (em textos religiosos), se assim o desejasse, bem poderia destrui-lo (destruir deus), bem poderia ignorá-lo, jogá-lo no mais absoluto ostracismo.
a víbora-língua, em seu reino emblemático, reino simbólico, pode tudo.
a língua, sendo o substrato, sendo o cerne, sendo o princípio ativo, o âmago, do pensamento, a língua instiga, a língua incita, fustiga, a vista do leitor atento: pois que a vista do atento leitor, em geral, está a postos às imagens que se desnudam aos olhos, imagens que se desdobram em imagens, digo: metáforas (como esta abaixo):
uma flor só sabre (arma branca, de lâmina pontuda & afiada, em forma de espada), uma flor-arma, estimula a vista do leitor atento, que vê a flor (por isto uma flor-sabre) moendo a chuva: belezurazul a flor só sabre, flor só sabre porque moe os pingos da chuva que caem nas suas pétalas-lâminas.
a visão do leitor atento é um ato criativo.
e o ato criativo é cheio de surpresas. por isso é surpreendente: pois lida com o imponderável. assim como os acontecimentos da vida, sempre repletos de surpresas, acontecimentos que não podemos controlar por completo por causa do componente imponderável.
esperar que alguma coisa aconteça sem a presença (luxuosa!) da surpresa seria ignorar o fato de que o ato criativo, repleto de insights, repleto de achados surpreendentes, explica-se a si mesmo:
o ato criativo explica-se a si mesmo porque o ato criativo se basta, não precisa de nenhuma outra explicação que não seja o próprio ato criativo. não existe uma fórmula, uma maneira, uma regra, para o ato criativo. são inúmeras as formas, inúmeros os modos, de apresentar-se o ato criativo às nossas vistas. assim como com os acontecimentos mundanos: não existe uma fórmula, uma maneira, uma regra, para viver a vida. são inúmeras as formas, inúmeros os modos, de apresentar-se uma situação mundana/quotidiana às nossas vistas.
no ato criativo-poético, surpresa!, tudo cabe:
o caramujo desemparelhado não muge, o caramujo, por sua incapacidade de mugir, não muge, mas, no poema, bem poderia.
a lei da surpresa compreende o novo, o incerto.
olhar as coisas sempre com o olhar de surpresa é compreendê-las sempre novas, sempre incertas.
portanto:
olhar cem vezes a mesma taça como se pela primeira vez:
olhar uma vez pela primeira vez, olhar duas vezes pela primeira vez, olhar três vezes pela primeira vez, olhar quatro vezes pela primeira vez, olhar cinco, seis, sete, oito, nove, dez vezes pela primeira vez, e assim sucessivamente, beber a taça que se encontra vazia de entendimento, embriagar-se do seu silêncio, não entendê-la (a taça) todas as vezes que bebê-la no seu vazio, não entendê-la porque, no olhar, sempre a surpresa, sempre a tentativa de reconhecimento do inesperado, do incerto, do surpreendente (e continuamente vazio), dentro da taça.
feliz (ou não!) aquele que encontra o que as coisas dizem sem que as coisas saibam, feliz (será?) aquele que encontra sentido em tudo que encontra, feliz (mas como?) aquele que encontra resposta para tudo com que se depara…
quando partimos de um porto decantado, quando partimos de um porto seguro, de um porto previsto, porto depurado, e singramos, e navegamos, o novo, e singramos o desconhecido, a única certeza é a lei da incerteza.
na undécima fração de um último segundo, é conveniente virar uma esquina ao avesso. ou seja: no último momento antes da sucessão de um fato, momento último antes da passagem duma coisa a outra, virar uma esquina, lugar onde caminhos & ruas se cruzam, ao avesso na intenção de extrair o mais potente efeito-surpresa.
virar uma esquina ao avesso na undécima fração de um último segundo: virar a surpresa (que reserva a esquina) ao contrário, para obter, desse jeito, a surpresa da surpresa, para obter o que possa ser o mais surpreendente.
é desse modo (virando uma esquina ao avesso na undécima fração de um último segundo) que não busco a palavra exata, é desse modo (virando uma esquina ao avesso na undécima fração de um último segundo) que não busco o claro sentido, ou a palavra pela palavra (sofrimento antigo, que acompanha todo & qualquer escritor desde a invenção — arbitrária — da palavra). eu não busco o novo, não busco a liberdade selvagem do lobo, não busco a perfeição do ovo.
não busco. mas encontro.
(deixo o acaso ditar, em mim, os seus preceitos.)
com todas as capacidades da víbora lingüística (que só não é deus não porque não quer, mas porque deus não existe), ninguém subestima a pedra feita só de letras, pedra que não é “pedra”, pedra que, no fundo, é palavra, pedra imóvel na página de papel, pedra que, através das linhas delineadas, vai compondo sua forma & seu cenário, pedra pousada na relva, pedra silenciosa, cercada de verde, pedra que caberia na concha de uma das mãos, pedra que nunca será um peso sobre o papel nem produzirá círculos concêntricos em algum lago real, pedra que não quebrará vidraças nem derrubará latas & garrafas servindo ao exercício de pontaria de alguém.
pedra sem as propriedades & as possibilidades de pedra:
pedra-palavra.
mas ninguém subestima o efeito de sua pedrada (em nossas mentes & vida).
a víbora lingüística: uma vida que diz respeito somente a nós.
a víbora lingüística: uma vida toda linguagem.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Meta Língua. autor: Alexandre Brito. editora: Éblis.)
a língua
é uma serpente sem pele e sem dentes
emblemática
morde a si mesma com as gengivas de um velho diabo
já foi minha vizinha
mas no mês passado mudou para endereço ignorado
não bate bem do firmamento
tem a cabeça cheia de vocábulos
a víbora linguística diz
que do pensamento é o substrato
no ápice do eclipse
em nominar o inominado insiste
e que só não é deus não porque não quer
mas porque ele não existe
ALTALVURA AO SUL DIUMTUDO
uma flor só sabre
fustiga a vista do leitor atento
belezurazul de chuvamoendo
esperar que alguma coisa aconteça sem
a presença luxuosa da surpresa
seria ignorar o fato
de que o ato criativo explica-se a si mesmo
o caramujo desemparelhado não muge
mas aqui bem poderia
A ESQUINA
olhar pela primeira vez cem vezes a mesma taça
vê-la transbordar vazia de entendimento
bebê-la com os olhos abertos de um só gole
e embriagar-se de silêncio como as girafas o fazem
não é exatamente um experimento científico
ou um êxtase espiritual
mas bem pode ser uma experiência artística
feliz de quem encontra o que as coisas dizem sem que elas saibam
quando partimos de um porto decantado
e singramos o novo
a única certeza é a lei da incerteza
na undécima fração de um último segundo
é conveniente virar uma esquina ao avesso
não busco a palavra exata
o sentido. o sentimento
nem a pedra lançada no firmamento
ventania que represa o rio
entendimento
ou a palavra pela palavra
o sofrimento antigo. o novo
a liberdade selvagem do lobo
instinto que se quer arte
perfeição do ovo
não busco. mas encontro
imóvel
pousada na relva comodamente assentada
com forma irregular arredondada
características graníticas
— o tom acentuadamente terroso a distingue —
silenciosa
cercada de verde por todos os lados
respira o dia anil
indiferente ao sol que a assola
— caberia na concha de uma das mãos —
nunca será um peso sobre o papel
nem produzirá círculos concêntricos
em algum lago real
não quebrará vidraças
nem derrubará latas e garrafas
servindo ao exercício de pontaria de alguém
mas ninguém subestima
a pedra feita de letras.
Paulo, adorei o texto, maravilhoso. Beijos
Muitíssimo obrigado pelas palavras, Celia!
Beijo grande!
E colo aqui minha língua, um poema meu para conVersar aqui, beijos Paulo e bom retorno de Carnaval, bom sempre estar por aqui.
Lampejos
Na língua
tua fantasia
:
saliva
com que
selas
deslizas
me acaricias
Na língua
teu cortejo
:
poema
com que
tatuas
abraças
em desejo
Na língua
estamos nós
– paladares de seres –
menos sós
lampejos…
Carmen Silvia Presotto – Vidráguas
Adorei a nossa conVersa, Carmen querida!
Belo poema!
Obrigado por sua presença sempre estimada, que maravilha!
Beijo GRANDE!
* Corrijo-me entre tanto aqui(s)… mas já havia postado, quando vi que bastaria um aqui(rs).
beijos.
Carmen.