(trecho do capítulo: 14. livro: Poesia e filosofia. autor: Antonio Cicero. editora: Civilização Brasileira.)
OS FETICHES RETÓRICOS
É curioso que, embora (…) já no século III a.C. Aristóteles tenha denunciado a confusão entre poema e sequência de versos, ainda hoje muita gente a repita. A palavra de Aristóteles que traduzi por “verso” (…) literalmente significa “metro”. Assim, (…) a palavra “verso” significa “verso métrico”, isto é, escrito segundo determinado esquema métrico.
Tanto o emprego do verso métrico quanto de outros recursos teóricos, como, por exemplo, a rima, já pareceram a muitos (e ainda parecem a alguns) serem não apenas condições necessárias (o que já estaria errado), mas também condições suficientes para a produção de um poema.
Isso, na verdade, significa transformar esses recursos teóricos em fetiches. A palavra “fetiche”, como se sabe, vem do francês, fétiche, que, por sua vez, vem do português “feitiço”. O fetiche, como o feitiço, é um objeto ao qual falsamente se atribuem poderes mágicos. Pode-se dizer que o mundo pré-moderno, tendo fetichizado determinados recursos teóricos, lhes atribuía o poder de produzir poesia.
Isso aconteceu, por exemplo, com a rima. Os poemas gregos e latinos raramente eram rimados. A rima era pouco usada nas línguas antigas, pois a produção de uma rima é, nas línguas declinadas como grego e latim, relativamente trivial. Somente com a decadência da poesia latina, na Idade Média, é que as rimas vieram a ser usadas de modo sistemático, a partir sobretudo dos séculos XI e XII. Quando se passou a escrever poesia lírica nas línguas neolatinas, a rima era um dos recursos retóricos disponíveis. Ora, por ser, nessas línguas não declinadas, um recurso menos trivial do que na língua latina, a rima acabou tendo, na poesia daquelas, uma função muito mais valiosa do que tivera na poesia desta.
No século XVII, na França, o poeta Boileau cuja Art poétique havia codificado o bom gosto, no que diz respeito à poesia francesa, decretara que o bom-senso deve sempre estar de acordo com a rima.
(…)
No século XIX, a rima já estava tão associada à poesia, uma vez que a maioria esmagadora dos poemas líricos que se faziam era rimada, que um texto que não fosse escrito em versos métricos e rimados corria o risco de não ser tomado como um verdadeiro poema pelo leitor médio. Por outro lado, qualquer conjunto de versos métricos e rimados costumava ser automaticamente chamado, pelo mesmo leitor médio, de “poema”. Dessa maneira, atribuía-se à versificação métrica rimada o poder mágico de produzir poesia. O verso métrico e rimado tornou-se um fetiche.
Esse seu texto citado é de uma perfeita conscientização. A grande ralé poética que se desenvolve hoje, ainda crê que, se rimou é poesia!
Uma tristeza ler certos “poetas” que circulam na net, uma vez que o gosto melódico do poema não é restrito ao sistema racional do ser humano, mas à alma que o escritor empresta às palavras para que estas sejam de valor real.
Gostei muito e vou partilhar no face… =) Grande abraço…
Adorei as suas palavras, Kiro!
Que bom saber que gostou da publicação!
Beijão!
Outro beijo, em honra a sabias considerações!!!! =)
Paulinho, lembro bem de um encontro nosso nos corredores da FCS, na época que o senhor publicou um livro com seu poemas, e que eu, ainda mais ignorante que hoje das coisas do mundo, lhe perguntei exatamente sobre essa questão: o que você achava das rimas nos poemas, e o que você achava dos poemas sem rimas. Lembro que você, já naquela época, ecoava essas palavras aí de cima, as suas próprias e as do Cícero: você disse que gostava das rimas, por uma questão próprias, mas o poema não carecia delas. O que isso demonstra? Além de tudo, que coerência não se compra na farmácia. 🙂
Segundo detalhe que o texto me fez pensar foi: Borges [quem mais seria, né?] dizia gostar da rima por um recurso mnemônico. Cego, ele precisava se lembrar de todos os versos antes de [re]citá-lo. Ele dizia que a rima era bom porque dava ritmo aos seus versos, mas, por sua vez gostava muito de Walt Whitman, por exemplo, que usava bastante verso branco.
Puxa, Ronaldo, que bacana você lembrar desse nosso momento!
Eu realmente não lembro, mas a minha cabeça… Cê sabe. 😉
É bom pensar, reafirmar, que coerência não se compra na farmácia (rs). Adorei isso (rs).
E que maravilha pensar que conto com amigos, como você, que estão na minha vida há bastante tempo, e estamos aqui, ainda amigos & felizes pela amizade.
Beijo grande!