OS GUARDADORES

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a seguir,
 
versos muito criativos espertos divertidos, que fazem, evidentemente, uma contraposição (bem arquitetada & bem-humorada) aos versos proferidos por alberto caeiro, célebre heterônimo do maior poeta da língua portuguesa, o genial fernando pessoa, heterônimo conhecido por sua poética sempre ligada a uma vida no interior, longe dos centros urbanos, mais perto da natureza, junto a prados & montanhas & flores & pássaros & riachos, heterônimo anti-metafísico, crente numa existência afastada dos pensamentos (o que, segundo caeiro, problematiza & complica as nossas vidas) & intimamente conectada às sensações corpóreas (tato, visão, audição, sabor, fragrância), sensações despertadas pelo convívio com as coisas mundanas (prados & montanhas & flores & pássaros & riachos), autor de um livro intitulado “o guardador de rebanhos”.
 
a seguir,
 
versos que se contrapõem aos de caeiro, mas que, ao mesmo tempo, fazem alusão ao guardador de rebanhos: “o guardador de carros”: um homem da cidade, longe da vida bucólica idealizada junto a paisagens rurais, que transita em meio a carros, ladrões de carros, gorjetas & arranhões na lataria dos veículos.
 
apesar da contraposição “cidade X campo” (o que, por si só, acaba por gerar uma divergência temática), os poemas que formam “o guardador de carros” referem-se diretamente aos poemas reunidos por alberto caiero em “o guardador de rebanhos”, havendo, desse modo, uma aproximação entre os guardadores:
 
o primeiro poema da série do guardador de carros faz menção ao poema IX do pastor português, onde dizem os versos primeiros: 
 
 
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações. 
 
 
o segundo poema do conjunto faz menção ao poema V, um clássico de alberto caeiro, que inicia já com o impactante & conhecido verso:
 
 
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
 
 
o terceiro poema do guardador de autos faz menção ao poema XIV, onde afirma o guardador de rebanhos:
 
 
Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
 
 
o quarto poema refere-se a um outro clássico de caeiro, o célebre poema VIII, em que é narrada a vinda, em sonho, do menino jesus (peralta, muito arteiro) à terra:
 
 
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
 
 
e o quinto & último poema do guardador de carros refere-se a um também famoso poema, o de número X, do guardador de rebanhos:
 
 
“Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?”
 
“Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois (…).”   
 
 
deliciem-se com esta saborosa & esperta homenagem do poeta ricardo silvestrin ao grande mestre fernando pessoa, aproveitando para reler (aqueles que já conhecem sua obra) os poemas do pastor português, o que — todos sabem — sempre vale o tempo empregado.
 
(ricardo silvestrin, eis aqui o seu presente de aniversário.)
 
beijo em todos!
um outro, especial, no aniversariante do dia!
paulo sabino.
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(do livro: O menos vendido. autor: Ricardo Silvestrin. editora: Nankin Editorial.)
 
 
 
O GUARDADOR DE CARROS
 
 
1
 
Sou um guardador de carros,
e eles são todos meus
no meu pensamento.
Durante as festas e espetáculos,
abandonados por seus donos,
só têm a mim,
o pastor deste rebanho.
Estão bem cuidados,
mas se uma ovelha negra
não dá gorjeta,
o meu cajado arranha.
 
 
2
 
Um carro anda sem metafísica:
um pé no acelerador,
outro na embreagem,
mão esquerda no volante,
mão direita na mudança.
E a cabeça não vai nele.
Vai sozinha
a quilômetros de distância.
 
 
3
 
Nenhum ramo é igual a outro,
mas os carros são feitos em série.
Só daqui de onde estou,
vejo quatro gols pretos
como monótonas rimas.
Mas não sou poeta.
Sou arrimo.
 
 
4
 
Meninos Jesus voltou à Terra,
e eu lhe ensinei a guardar carros.
“Tá bem cuidado, tio” — ele disse,
escondendo os pregos das mãos.
 
 
5
 
“Olá, guardador de carros!”
São os ladrões se aproximando.
“Nunca guardei carros”,
eu respondo.
“Estou aqui como os postes e as árvores.
Não vejo, não ouço, não penso.
Sem falar numa grande vantagem:
posso correr como o vento.”
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2 Respostas

  1. Grande Paulo! Muito obrigado pela gentil homenagem e, mais do que isso, pela leitura atenta do diálogo entre os poemas. É assim que a poesia se realiza completamente, na leitura, ainda mais numa leitura qualificada como a tua. Abraço!

    • Quem agradece sou eu, poeta, a sua sagacidade & inteligência para formulação de diálogo tão saboroso entre os poemas!

      Um duplo parabéns: pelo aniversário & pela poética, sempre benvinda & “benlinda”!

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