O LUGAR DE UM CANTANTE

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estou bêbado, inteiramente embriagado de canções & azul (de azul da cor do céu, de azul da cor do mar).

 estou cantante para nada, para ninar a madrugada.
 
(o cantar de um galo em férias, galo sem a obrigação diária, matinal, de anunciar o alvorejar, galo que canta despretensiosamente, pelo puro & simples prazer de cantar.)
 
canto para dizer que o meu coração é um lago mais tranqüilo, onde a dor não tem razão. 
 
canto até para o vento, que, como o tempo, não tem começo nem fim; canto até para as pedras, que silenciam para aplaudir.
 
canto:
 
meus pés estão marcados pelo salmo das águas, pelo cântico sagrado do mar (rainha do mar anda de mãos dadas comigo, me ensina o baile das ondas & canta canta canta para mim), e pelo salmo das pedras fogueadas, pedras que, segundo a bíblia, livro sagrado dos cristãos, constituíam o éden original & mineral, pedras preciosas por onde caminhava lúcifer, o anjo torto, antes de ser expulso do jardim sagrado, pedras que, após a sua expulsão, foram destruídas & transformadas nos asteróides & cometas que cortam os céus.
 
meus pés: marcados pelo cântico das águas & pelo brilho intenso, brilho quente, brilho celestial, das pedras fogueadas.
 
caminho com a luz entre os dentes, luz irradiada do canto que sai da minha boca, e minha febre incendeia os crisântemos (em grego, “crisântemo” significa “flor de ouro”; na china, o crisântemo era uma flor exclusiva da nobreza; no japão, por sua semelhança com o sol nascente, tornou-se símbolo do país).
 
já vai longe a névoa de escombros, já vai longe qualquer resquício do que restou destroços, do que restou entulho, do que foi destruído, e, ainda assim, ouço o ruir de muralhas, e, ainda assim, ouço o ruir de paredes altas, de paredes que obstruem passagem, que impedem, o ruir de muros que nos deixam fora do alcance, e percebo muralhas que ainda faltam ruir, muitas mundo afora, face ao desabrigo (de tantos) e face ao sangue insigne, sangue notável, distinto, daqueles que o derramam em prol da extinção de tais muralhas.
 
canto à floração dos ossos, para o seu desabrochar, canto para o desenvolvimento & fortalecimento dos ossos, ossos que nos levam adiante, que nos equilibram de pé, ossos que nos encaminham à vida.
 
e canto desde um reino em que a palavra apascenta o deserto, isto é, canto desde um reino em que a palavra conduz o que é deserto (o que é desabitado, seco, inóspito) ao pasto, a fim de nutrir, a fim de alimentar & dar sustento ao árido, ao que pouco ou nada produz.
 
a palavra apascenta o deserto: e a poesia é o lugar do coração que pensa.
 
poesia: lugar do coração que pensa: pois que a poesia exige do poeta a palavra muito bem pensada, a poesia exige do poeta a palavra planejada, a poesia exige do poeta a palavra estudada, no intuito do poema atingir em cheio a sensibilidade, a emoção, o coração, de quem o lê.
 
bêbado de canções & azul (de azul da cor do céu, de azul da cor do mar), eu canto & meus males espanto.
 
(que assim seja, agora & sempre.)
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: A cor da palavra. autor: Salgado Maranhão. editora: Imago.)
 
 
 
CANTANTE
 
Para Luiz Augusto Cassas
 
 
 
Estou bêbado de canções
e azul.
 
Estou cantante para nada,
para ninar a madrugada.
 
(O cantar de um galo em férias.)
 
Canto até para o vento
que não tem começo nem fim;
 
canto até para as pedras
que silenciam para aplaudir. 
 
 
 
LUGAR
 
para Carlos Nejar   
 
 
 
Meus pés estão marcados
pelo salmo das águas
e das paredes fogueadas.
 
Caminho com a luz entre os dentes
e minha febre 
incendeia os crisântemos.
 
Já vai longe a névoa
de escombros 
e ouço
              ainda
o ruir de muralhas
 
face ao desabrigo
e ao sangue insigne.
 
E canto à floração dos ossos;
 
e canto
desde um reino insondável
em que a palavra
apascenta o deserto.
 
A poesia é o lugar
do coração que pensa.

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