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situações de puro abandono: a improdutividade:
o leitor abre & fecha um livro após o outro, sem ler deles mais do que um parágrafo: nada engrena, nada tem graça, todos os livros são chatos — uma depressão semiológica, isto é, uma depressão relacionada à semiologia, relacionada à semiótica.
(semiologia: semiótica: numa acepção genérica, o termo indica uma teoria geral das representações, uma reflexão um tanto sistemática sobre os signos — sobre os símbolos —, suas classificações, as leis que os regem, seus usos na comunicação. a semiótica é uma teoria que leva em conta os signos sob todas as formas & manifestações que assumem — lingüísticas ou não.)
(a depressão semiológica é uma depressão relacionada aos símbolos; a linguagem é simbologia; portanto, neste caso específico, depressão ligada aos símbolos lingüísticos, depressão ligada às palavras.)
cuidado: alerta: (a tal depressão semiológica) pode decorrer de uma compreensão equivocada de homeostase criativa (homeostase: estado de equilíbrio das diversas funções & composições químicas do corpo), isto é, a tal depressão semiológica pode decorrer de uma compreensão equivocada do estado de equilíbrio das diversas funções & composições da criação (do ser que a anima):
descansar para repôr forças. repousar a fim de que a força criativa retorne com todo o gás.
no entanto, essa compreensão de homeostase criativa (descansar para repôr forças) revela, no corpo, entranhas dialéticas: coisa muito comum no espaço literário: quanto mais se escreve, quanto mais se pratica, maior a vontade de escrever; quanto menos se escreve, quanto menos se pratica, menor a vontade de escrever. isto é: quanto mais se produz, mais se tem força; quanto mais se descansa, mais se fica cansado.
descansar para repôr forças pode ser um grande perigo…
não falo de “ociosidade” — o ócio é um vazio fértil —, mas de improdutividade: o deserto deserto.
a improdutividade: nada engrena, nada tem graça, todos os livros são chatos: uma depressão semiológica: olhos estragados: dias em slow motion.
lutar (contra esse estado)? resistir (a esse estado)?
chega um momento que não. que não adianta lutar, que não adianta resistir.
não adiantando peleja contra a depressão semiológica, o jeito é entregar-se ao fatalismo russo (fatalismo herdado da literatura russa): deite-se na cama & deixe a neve, o torpor de tal estado (o torpor da depressão semiológica), cobrir o seu corpo.
situações de puro abandono: no meio da tarde:
o leitor não cede. insiste na mesma página por cujas letras o sono escala até os olhos, e uma vez aí entrando (nos olhos), o sono apaga todas as luzes (o leitor se dá conta de que é a terceira ou quarta vez que leu a mesma página sem nada poder reter).
o leitor entrega os pontos: cruza os braços sobre o livro, fecha os olhos & adormece.
acorda, atordoado, (por sobre o livro) e recomeça a leitura, com um incêndio na testa & um formigueiro nos braços.
um incêndio na testa: o fogo da criação. um formigueiro nos braços: o desejo de apreensão daquilo que se lê.
recomeçar a leitura com um incêndio na testa & um formigueiro nos braços: sintomas decorrentes do sono do leitor por sobre o livro (o leitor sentado em sua mesa de estudos), com os braços cruzados & a testa caída por sobre os braços cruzados, testa que pressiona os braços, causando, nela (na testa), a sensação de ardência (de incêndio), e causando, nos braços, uma ligeira dormência, dormência que deflagra a sensação de formigamento.
situações de puro abandono (literário): situações que acontecem ao mais aplicado leitor.
o lance é deixar ser & não desesperar (rs).
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Da amizade. autor: Francisco Bosco. editora: 7Letras.)
A IMPRODUTIVIDADE
1. O leitor abre e fecha um livro após o outro, sem ler deles mais do que um parágrafo:
2. nada engrena, nada tem graça, todos os livros são chatos
3. — uma depressão semiológica.
4. Alerta: pode decorrer de uma compreensão equivocada de homeostase criativa
5. — descansar para repôr forças —
6. anunciando perigosamente no corpo entranhas dialéticas:
7. quanto mais se produz, mais se tem força; quanto mais se descansa, mais se fica cansado.
8. A tradução, talvez, apropriada para o désoeuvrement de que fala Blanchot
9. (cf. O espaço literário):
10. não “ociosidade” — o ócio é um vazio fértil —, mas improdutividade, o deserto deserto.
11. Olhos estragados.
12. Dias em slow motion.
13. Lutar? Resistir? Chega um momento que não
14. — fatalismo russo: deite-se na cama
15. e deixe a neve cobrir o seu corpo.
NO MEIO DA TARDE
O leitor não cede. Insiste
na mesma página — que,
dá-se conta, é a terceira
ou quarta vez que já leu,
sem nada poder reter —,
por cujas letras o sono
até os olhos escala,
e uma vez aí entrando,
todas as luzes apaga.
O leitor entrega os pontos:
cruza os braços sobre o livro,
fecha os olhos e adormece.
Acorda, atordoado,
e recomeça a leitura
com um incêndio na testa
e um formigueiro nos braços.
Reblogged this on Fiore Rougee comentado:
Nos últimos anos tenho sido acometida por essa doença, um horror!!!
Pois é, acontece nas melhores famílias…
Beijo!
Minuciosas distinções entre dois não-fazeres.
Abração!
Abraço FORTE, Marcelo querido!
Bom saber das suas visitas a este espaço! 🙂