A PALAVRA (2)

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a palavra desconfia do poeta como o amante da pessoa amada.

 
tanto a palavra quanto o amante se presumem atraiçoados (a palavra, atraiçoada pelo poeta; o amante, atraiçoado por quem ama).
 
tanto a palavra quanto o amante, por conta da sensação de atraiçoamento, sentem-se inseguros, medrosos do destino que lhes darão (a palavra: medrosa do destino que lhe dará o poeta; o amante: medroso do destino que lhe dará a pessoa amada), temerosos do chão por onde os levam (a palavra: temerosa do chão por onde o poeta a leva; o amante: temeroso do chão por onde a pessoa amada o leva), quando, no fundo no fundo, palavra & amante é que são infiéis. 
 
infiéis, porque tanto a palavra quanto o amante sabem ser tantos dentro de um só… tanto a palavra quanto o amante, repletos de desejos, repletos de vontades multifacetadas, repletos de segundas & terceiras intenções, de delírios, alucinações.
 
(palavra: forma imprecisa que ninguém distingue: nem peixe nem saltimbanco: significações múltiplas.)
 
estrelada, cheia de luz, a palavra se insinua, a palavra me deslumbra, a palavra me comove, mas, quando quero (re)tê-la, ela se esquiva — arisca, arredia, intratável. esquiva que é, a palavra mal permite um toque, a palavra mal permite uma aproximação, e, inefável (indescritível), me espia, impenetrável.
 
(palavra: muito mais arredia que um peixe. em cardumes, sem que eu consiga capturá-la a tempo, a palavra escapa pelos dedos.)
 
a palavra: impenetrável, arredia. porém, apresenta-se tanto mais pura quanto mais esquiva (quanto mais pensada, mais árdua a procura pela palavra; contudo, quando encontrada, a palavra se dá mais nítida, mais pura em folha de papel, a palavra se dá iluminada, a palavra se dá estrelada).
 
a palavra: um mistério (para mim): ainda não consegui, eu que leio poetas todos os dias, encontrar a “medida universal” (medida que poderia ser aplicada a todo & qualquer poeta), a “fita métrica mágica”, para aferir (para medir, para avaliar) quem é grande, quem é maior ou menor poeta.
 
menor por quê? por que maior?
 
os que somos: somos poetas, e ponto.
 
cada leitor é quem sabe os que lhe chegam mais perto do peito, do ser, da fronte.
 
não sei se os meus prediletos são pequenos ou são grandes. sei só que são bem-amados. e são bem-amados porque só gosto do que me comove, só me comove o que entendo.
 
quem me freqüenta de blog ou de vida, o que, de certa maneira, vem a dar no mesmo, sabe que não padeço da feia enfermidade (esta doença social) da falsa modéstia.
 
o arqueiro, até pela sombra que faz a flecha, antes mesmo de alçá-la em vôo, sabe se ela vai dar, ou não, lá no alvo.
 
o coração do cientista bate mais forte quando olha a proveta (tubo de ensaio: vaso de vidro em forma de tubo cilíndrico, fechado em uma das extremidades, em que se fazem experiências em laboratório) & a vê florescendo dos seus experimentos.
 
o artista sabe quando a sua apresentação não está à altura das suas capacidades.
 
e o poeta sabe se a beleza fez o milagre do poema. 
 
(não padeço da feia enfermidade — esta doença social — da falsa modéstia.)
 
o poeta deve ser, sempre, o seu primeiro leitor & crítico. 
 
tudo que escrevo, antes, passa pelo meu crivo, passa pela minha avaliação. eu, paulo sabino, preciso gostar, eu, paulo sabino, preciso admirar — antes de qualquer outra pessoa — os textos que escrevo, porque só assim os considero válidos à publicação.
 
até hoje palavras me amedrontam.
 
(há de se ter audácia, há de se ter coragem, para adentrar o reino das palavras.)
 
certas palavras, impenetráveis, áridas, por mais que me afaste delas, parece que mofam (que zombam) de mim. parece que certas palavras mofam de mim porque, por mais que me afaste delas (áridas, impenetráveis), a distância que desejo delas nem sempre é alcançada, e elas, por mais que eu não queira, elas (as palavras áridas, duras, impenetráveis) me alcançam.
 
no entanto, por sorte, sou adorado por tantas outras palavras. 
 
ainda bem que muitas gostam de minha boca. e amanhecem cantando no meu peito.
 
a palavra: a (grande) chave do mundo.
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: De uma vez por todas. autor: Thiago de Mello. editora: Bertrand Brasil.)
 
 
 
A PALAVRA DESCONFIA
 
 
A palavra desconfia do poeta
como a mulher do homem.
Ambas se presumem atraiçoadas.
Inseguras, medrosas do destino
que lhes darão, do chão por onde as levam,
quando elas é que são as infiéis;
sabem ser tantas dentro de uma só.
Estrelada, a palavra se insinua,
me deslumbra, mas quando quero tê-la,
ela se esquiva, mal permite a pele
e inefável me espia impenetrável.
 
 
 
PALAVRA PERTO DO PEITO
 
 
Ainda não consegui, eu que leio
poetas todos os dias,
encontrar a medida universal,
a fita métrica mágica,
para aferir quem é grande, quem é maior
                ou menor.
Menor, por quê? Por que maior?
Somos poetas, os que somos.
 
Cada leitor é quem sabe
os que lhe chegam mais perto
do peito, do ser, da fronte.
Não sei se os meus prediletos
“Eu plantei um pé de sono
brotaram vinte roseiras” *
(só gosto do que me comove,
só me comove o que entendo)
são pequenos ou são grandes.
Sei só que são bem-amados.
 
Quem me freqüenta de livro
ou de vida, o que afinal
vem a dar no mesmo, sabe
que não padeço da feia
enfermidade da falsa
modéstia.
 
                            O arqueiro, até
pela sombra azul da flecha,
sabe que vai dar lá no alvo.
O coração do cientista
bate mais forte quando olha
a proveta florescendo.
Sabe o artista se a beleza
fez o milagre do poema.
 
Até hoje palavras me amedrontam.
Certas delas, impenetráveis, áridas,
por mais que delas me afaste,
parece que mofam de mim.
Ainda bem que muitas gostam de minha
                boca,
amanhecem cantando no meu peito.
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* Versos de Drummond.
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