(Paulo Sabino na companhia daquela que o trouxe ao mundo, a grande responsável.)
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senhores,
hoje, 19 de outubro, é um dos dias mais importantes da minha vida, pois foi hoje que, há 70 anos atrás, veio ao mundo aquela que ao mundo me revelou.
hoje, 19 de outubro, a minha amada & idolatrada (salve salve!) cabocla jurema armond, minha mãe, vence as suas 70 primaveras, feliz por vencê-las & cheia de disposição para a vida.
digo a vocês que a minha mãe é figura central & imprescindível na minha formação.
desde pequeno, me incitava à leitura. desde pequeno, mesmo com seus medo & respeito, me incitava o amor marinho. foi com dona jurema armond que conheci aquela que me abriu as portas da poesia: maria bethânia, e também foi com dona jurema armond que conheci parte da história do cancioneiro popular brasileiro, que, juntamente à poesia, é a arte que mais me emociona.
meu amor pelo mar, meu amor pela leitura, meu amor pela música, tudo isso eu devo a ela, à minha mãe, estrela do meu céu.
devo a ela tudo que sei de mais fundo sobre o amor & suas capacidades.
jurema armond é capaz de tantas belezas… aprendo ouvindo, conversamos muito, mas, sobretudo, aprendo observando as suas ações no quotidiano, observando os seus modos de processar a vida.
em todos eles, em todos os seus modos de processar a vida, o que sempre cabe é: amor.
é claro, evidente, que a minha cabocla se aborrece, se irrita, se chateia. como todo bom ser humano. entretanto, mesmo aborrecida, irritada, chateada, o viés dos seus atos está sempre de acordo com o amor. não alimenta brigas, não alimenta rancores; tem horror a isso. não abre mão de uma boa conversa, sempre pronta a ouvir, desarmada, verdadeira.
suas preferências mundanas (no que se refere a bens materiais) são simples, corriqueiras; suas sofisticações moram em outro departamento: e é assim, desse jeito, que se faz a sua sapiência, a sua sabedoria, sabedoria que busco para minha existência. as minhas sofisticações, assim como as da minha mãe, são existenciais, portanto, mais profundas, não-superficiais. de resto, sou homem de gosto ordinário, de gosto simples, sou um homem comum, qualquer um.
aos 70 anos, dona jurema armond não acumulou bens, não acumulou dinheiro. possui o suficiente para uma vida digna, sem dificuldades financeiras.
a sua sabedoria: sofisticações existenciais & preferências mundanas (no que se refere a bens materiais) corriqueiras: os desejos, aos 70 anos, de dona jurema armond:
de religiosidade acentuada, roga à vida a sua justa medida, nem para mais nem para menos.
pede que não sinta o que não tem & não lamente o que podia ter mas se perdeu — os lamentos, pelo que ficou para trás & não volta, não servem de nada.
jurema armond, com sua sapiência, busca ser como a chuva desejada caindo mansa, numa terra sedenta (sedenta de suas águas, águas que alimentam & revitalizam) & num telhado velho, desses casarões em ruazinhas residenciais que tanto avivam & aquecem o olhar.
à vida, a minha cabocla agradece o suficiente seu para uma existência confortável porém sem grandes luxos, ao lado das suas coisinhas, dos apetrechos que auxiliam a modelar os seus hábitos, a sua rotina.
na vida, a minha cabocla almeja acender, ela mesma, o fogo alegre da sua aconchegante morada, na manhã de um novo dia que começa.
começar & recomeçar, e assim por diante: seguir a trilha: eis o seu rumo.
de toda a sua sabedoria, ficam-me ensinamentos para um bem viver, ensinamentos dos quais não me esquecerei, ensinamentos que guardarei para sempre:
fazer uma chave, mesmo pequena (não importa o seu tamanho), entrar na casa, abrigar-se, acolher-se.
consentir na doçura, consentir na delicadeza, ter dó (e, com a dó, cuidar) da matéria dos sonhos (tão frágil a matéria dos sonhos, feita de ar, feita de vôo na imaginação) & da matéria das aves (tão frágil a matéria das aves, feita de penas & plumas, feita de vôo na imensidão).
invocar o fogo (o que arde, o que aquece, o que conforta), invocar a claridade, invocar a música dos flancos (o flanco: região localizada acima do quadril, região que mexe & remexe, que agita, que dança).
não dizer pedra (palavra dura, sem arestas, palavra que dói, palavra que machuca se arremessada), dizer janela (palavra que areja, palavra que ventila, palavra por onde chegam a luz & o ar).
não ser como a sombra (região onde a luz não chega).
dizer homem, dizer criança, dizer estrela.
repetir as sílabas onde a luz é feliz & se demora.
voltar a dizer: homem, mulher, criança.
(voltar) onde a beleza é mais nova — e é mais nova porque a beleza no homem, na mulher, na criança, a cada dia, a cada instante vivido, a beleza se re-nova.
aqui, senhores, desejos & ensinamentos para um bem viver, desejos & ensinamentos da dona juju.
(feliz aniversário, mãe! saúdo a sua existência agora & sempre!)
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Melhores poemas. autora: Cora Coralina. seleção: Darcy França Denófrio. editora: Global.)
HUMILDADE
Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.
Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.
Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura,
numa terra sedenta
e num telhado velho.
Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.
(do livro: Poemas de Eugénio de Andrade. autor: Eugénio de Andrade. seleção: Arnaldo Saraiva. editora: Nova Fronteira.)
Faz uma chave, mesmo pequena,
entra na casa.
Consente na doçura, tem dó
da matéria dos sonhos e das aves.
Invoca o fogo, a claridade, a música
dos flancos.
Não digas pedra, diz janela.
Não sejas como a sombra.
Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.
Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.
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