(Ofereço-vos, senhores, minha terra, chão primeiro que pisei & berço do que me tornei & tornarei, e minha mão, queimada pelo ardor das palavras & vestida com as roupas & as armas de Jorge.)
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terra, lugar de onde venho, terra, lugar cuja topografia também me forma & molda, terra: por mais distante, este errante navegante: quem jamais te esqueceria.
terra: de ti é que vêm essas portas de mim: as entradas & saídas por onde o paulo sabino é acessado, os caminhos por onde caminha o paulo sabino.
a terra onde nasci, chão primeiro que pisei, berço do que me tornei & tornarei, revela um bocado do que revelo em mim. a língua, os hábitos, o clima, a geografia: a terra onde nasci — chão primeiro que pisei, berço do que me tornei & tornarei — cabe toda em mim com as suas características.
terra: sendo de sol, sendo de luz & calor, a planície (da minha terra), os cômodos da casa onde me criei, o dorso que também foi meu, fecho-me, introspectivo, conectado apenas à terra de onde venho, porque em tudo te vejo, terra, como se fosses de água & derramasses teu corpo escurecido (teu corpo não claro, teu corpo nada fulgente, terra, aqui & agora, feita de ar & memória) na paisagem ao meu redor.
quis, para o canto que cantas através da minha garganta, terra, a mais viva palavra, a mais pulsante, a mais vibrante, a mais brilhante palavra: um só templo: o mais nítido templo-palavra sobre a colina, o mais limpo templo-palavra (a mais viva palavra, palavra que também seja templo, que também seja lugar erguido em homenagem a uma ou mais divindades) na luminosidade da hora.
meu rosto será aquele de todos os teus mortos, terra, isto é: rosto nenhum. meu rosto será aquele de todos os teus mortos quando me tiveres inteiro dentro de ti, terra: mais um rosto passado, anônimo, desconhecido: rosto nenhum.
e, no entanto, mesmo o meu rosto, no futuro, sendo aquele de todos os teus mortos (mais um rosto passado, anônimo, desconhecido: rosto nenhum), te amo como se eu mesmo fosse unicamente terra, te amo como se eu mesmo fosse tecido unicamente da tua matéria, terra, te amo como se eu mesmo fosse, ao mesmo tempo, teu pai (como se, de mim, saísses), teu filho (como se, de ti, saísse) & teu irmão na memória (porque em tudo te vejo, terra, como se fosses de água & derramasses teu corpo escurecido, teu corpo não claro, teu corpo nada fulgente, teu corpo, aqui & agora, feito de ar & memória), teu pai filho & irmão multíparos & claros, nascidos (o pai, o filho & o irmão que sou da minha terra) de uma só matriz, nascidos todos de uma única fonte, sofridos de uma só matéria: da matéria terra, terra de onde venho, terra onde nasci, terra que cabe em mim com as suas características.
terra: por mais distante este errante navegante: quem jamais te esqueceria.
e, sem heroísmo nem queixa, além de oferecer a minha terra, ofereço aos senhores esta minha mão que, neste instante, vos escreve.
sem heroísmo nem queixa, sem achar bom nem ruim, ofereço-vos minha mão aberta. agora a minha mão, senhores, vos pertence, queimada de uma luz tão viva, tão vibrante, tão pulsante, como se viva ardesse sob o sol.
olhai, senhores, se possível, a mão que se queimou de coisas limpas, olhai, se possível, a mão que se queimou de coisas isentas de qualquer sujidade, impureza ou mácula, mão chamuscada pelo calor & pela luz que saem das palavras desenhadas por ela.
e se souberdes, senhores, o que em vós é justiça, e se souberdes, senhores, o que em vós é mérito, é merecimento (afinal, ofereço-vos a mão que se queimou de coisas limpas, mão isenta de qualquer sujidade, impureza ou mácula), podereis refazê-la como a vossa mão. e, depois de igualada a minha mão à vossa, tornando-se, desse modo, a mão dos senhores, aproveitá-la (aproveitar minha mão aberta, mão que se queimou de coisas limpas, mão chamuscada pelo calor & pela luz que saem das palavras por ela desenhadas), a cada hora do vosso dia & para o vosso pão, para o vosso alimento.
(que assim seja.)
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Exercícios. autora: Hilda Hilst. organização: Alcir Pécora. editora: Globo.)
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Terra, de ti é que vêm essas portas de mim. E sendo
[de sol
A planície de pedra, de sol o vestíbulo da casa, de sol
O dorso que também foi meu, impaciente das aves,
[fecho-me
Porque em tudo te vejo como se fosses de água, e
[derramasses
Teu corpo escurecido, na paisagem. Quis para teu canto
A mais viva palavra: um só templo:
Nítido sobre a colina, limpo na luminosidade da hora.
Meu rosto será aquele de todos os teus mortos. E no
[entanto
Te amei como se eu mesma fosse unicamente terra,
[mãe, filha
Irmã na memória, multíparas e claras, nascidas de
[de uma só matriz
Sofridas de uma só matéria.
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Sem heroísmo nem queixa, ofereço-vos
Minha mão aberta. Agora vos pertence.
Queimada de uma luz tão viva
Como se ardesse viva sob o sol. Olhai se possível
A mão que se queimou de coisas limpas.
E se souberdes o que em vós é justiça
Podereis refazê-la como a vossa mão. E depois igualada
Aproveitá-la. A cada hora, a cada hora
E para o vosso pão.
Uau! Salve, salve Paulo Sabino!!
Que texto-poema-mão-alma inteira…nossa, que delícia, que força e que leveza…adorei!! as palavras são poucas para descrever a alegria que me trouxe o seu poema-canção-cantiga …enfim. 🙂
Rosa querida!
Que bom te ter por aqui, nos comentários!
Melhor ainda sabendo o quanto você gostou, maravilha!
Espero mais visitas suas!
Beijão!