

(Nas fotos, os quadros intitulados “Ecce homo”: o primeiro, de Antonio Ciseri; o segundo, de Caravaggio.)
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Ecce homo: segundo o evangelho, palavras ditas por Pilatos ao apresentar Jesus Cristo (flagelado, atado & com a coroa de espinhos) ao povo judeu, nada satisfeito com os seus feitos. Em português significa: “eis o homem”.
Na iconografia cristã (iconografia: “estudo descritivo da representação visual de símbolos e imagens, sem levar em conta o valor estético que possam ter”, dicionário Houaiss), “Ecce homo” é como se chamam as representações de Jesus Cristo em sofrimento.
Suave mari magno: a expressão “mari magno” foi utilizada pelo poeta latino Lucrécio para definir o prazer experimentado por alguém quando este se percebe livre dos perigos a que outros estão expostos.
Machado de Assis possui um poema célebre intitulado “Suave mari magno”, onde são narrados a morte de um cão, na rua, por envenenamento & o prazer silencioso de alguns transeuntes em assistir à triste morte do pobre cão.
Schadenfreude: expressão alemã, empregada em diversas línguas do ocidente, para designar o sentimento de alegria ou satisfação que uma pessoa pode apresentar perante o infortúnio ou tristeza de uma outra pessoa. É a felicidade que algumas pessoas sentem por ver a infelicidade de alguém.
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não ser quem não se é, isto é, ser exatamente o que se é, na justa medida, é coisa trabalhosa.
ser exatamente o que se é (que é o mesmo que não ser quem não se é) é coisa trabalhosa.
pois, para não ser quem não se é, exige-se a disciplina austera & rigorosa de quem, achando pouco simplesmente ser (ser exatamente o que se é), requer o luxo adicional de “parecer”.
as aparências enganam, e as essências também.
as essências enganam porque uma pessoa pode parecer ser essencialmente uma coisa que não é. uma pessoa pode parecer ser, por exemplo, essencialmente delicada & não ser exatamente essencialmente delicada.
e a pessoa que, por exemplo, parece ser essencialmente delicada pode acreditar na própria mentira ao ponto de afirmá-la como uma verdade inquestionável.
as essências enganam, e o “eu” é tão escasso, o “eu” é tão pouco, o “eu” é tão rasteiro, que há que ocupar com alguma coisa tanto espaço (o tanto de espaço que sobra & que acaba por ser preenchido pelo que não se é, pelo que é aparência), e nada como a “negação da negação” para efetuar tão delicada operação.
a delicada operação de ocupar com alguma coisa (já que o “eu” é muito escasso) tanto espaço: a “negação da negação”: ocupar um espaço com aquilo que não se é (a negação do ser, o “não-ser”) & acreditar nessa negação (acreditar naquilo que não se é) é, no fundo, negar a negação: a aparência (que é a “negação” do ser) é negada pelo ser como “aparência” & afirmada como “verdade inquestionável”.
o ser afirma-se na aparência, o ser, portanto, afirma-se na sua negação (no “não-ser”).
afirmando-se na aparência, o ser acaba por negar a aparência como “aparência”, e veste a máscara, e acredita na mentira que inventa (de si) para si: a negação da negação.
e pronto: está completo: o homem feito do ser & do “não-ser”: pronto, completo, no ponto.
o homem essencialmente delicado na aparência, assim como um andróide (autômato de figura humana), apresenta-se imune a suave mari magno & Schadenfreude.
o homem-robô, o homem previamente programado, o homem que obedece aos comandos previamente arquitetados por sua mente: o homem mais o andróide (autômato que tem figura de homem, cujos movimentos imita): ambos imunes a suave mari magno & Schadenfreude: o ser & o não-ser dentro do homem, na mais perfeita sintonia.
o homem: ser & não-ser no mais harmonioso convívio: o ser a ser viço, a ser energia, a ser força, ao não-ser. o ser a serviço, à disposição, do não-ser. o ser a con-viver com a aparência que projeta (de si) para si.
use & abuse (da aparência, do não-ser): a coisa vem com garantia: a “coisa”: aquilo que se projeta (de si) para si: a “coisa”: o não-ser, a aparência.
use & abuse: a “coisa” (o “não-ser”, a “aparência”) vem com garantia; usando & abusando, a “coisa” vem certamente.
use & abuse: a “coisa” vem com garantia: o homem pronto de fábrica, o homem pré-programado, o homem que age sob comandos pré-determinados, o homem feito um produto pré-fabricado (feito um andróide, que é um autômato de figura humana): o luxo adicional de parecer algo que não se é, a procura por alguma coisa que preencha o seu espaço vazio, o homem imune a sentimentos difíceis, complicados, perturbadores, o homem imune a suave mari magno & Schadenfreude.
ecce homo!…
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Formas do nada. autor: Paulo Henriques Britto. editora: Companhia das Letras.)
ECCE HOMO
Não ser quem não se é é coisa trabalhosa.
Exige a disciplina austera e rigorosa
de quem, achando pouco simplesmente ser,
requer o luxo adicional de parecer.
As essências enganam, e o eu é tão escasso
que há que ocupar com alguma coisa tanto espaço,
e nada como a negação da negação
pra efetuar tão delicada operação.
E pronto: está completo. O homem mais o androide,
imune a suave mari magno e Schadenfreude,
ser e não ser na mais perfeita sintonia.
Use e abuse. A coisa vem com garantia.
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Que bom.
Estou lendo Friedrich Nietzsche sempre. Às vezes, por admirar e gostar tanto das obras deste pensador, filósofo e escritor, releio-as. Agora que deparo com o texto: “Prosa e poema”, bem como na seguência, ‘Ecce Homo” fiquei encantado e alentado em ler algo mais de Nietzsche. Parabéns Paulo, por postar esta pérola! Abraço, Aparecido Guergolette.
Que bom saber, Aparecido Guergolette!
Aquele abraço!